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terça-feira, junho 27, 2006

O Repúdio da Retórica e as Dificuldades da Filosofia

Este é o 2º Artigo da série Retórica. O primeiros é:

01 - A Contenda Original

Górgias considerava que a retórica era um aspecto particular do raciocínio filosófico, por ele denominado loguismós. Assim, no prefácio do Elogio de Helena exprime sua proposta da seguinte forma:

"Deveria ser próprio de um mesmo homem dizer o que se deve de modo correto, ou confutar... Eu fornecerei, antes de mais nada, com a palavra, certo tipo de loguismós."


Mas o Górgias de Platão sancionou, pela primeira vez na história do pensamento, o divórcio entre filosofia e retórica. Apesar de, mais tarde, Aristóteles ter jogado muita água no fogo dessa polêmica cisão, esse divórcio perdurou e continuou a atuar em profundidade. O caso mais clamoroso nesse sentido foi o do primeiro historiador sistemático da filosofia, Diógenes Laércio, o qual, na sua célebre Vida dos Filósofos, tratou de 82 filósofos que viveram antes dele, dedicando tratamento especial até a personagens insignificantes e logo esquecidos, como Monimo, Onesícritos, Métrocles, mas não considerou Górgias digno de sequer duas linhas da sua história da filosofia.

Entretanto, foi precisamente a filosofia platônica que mais se ressentiu do divórcio da retórica. Ressentiu-se tanto no conteúdo como no estilo. No que concerne aos conteúdos, cortar relações com a retórica privou Platão daquela arte heurística da busca dos temas a tratar, que proporciona ao filósofo a justificativa dos pontos de partida das suas pesquisas. Górgias era um mestre em tal heurística, como nos atesta Aristóteles.

"Górgias diz que nunca lhe faltam argumentos. De fato, ele procede de modo tal que, devendo falar de Aquiles, vem a louvar Peleu [pai deste], depois a falar de Éaco [avô de Aquiles, divindade encarregada dos julgamentos no Hades], portanto da divindade..."


Apesar de ser de tipo mecanicamente associacionista, a heurística retórica assim descrita por Aristóteles pode sempre constituir aquele “fio condutor” (Leitfaden), que Husserl, com razão, considerará dever sempre sustentar a introdução de todo tema tratado pela filosofia.

Faltando o “fio condutor” heurístico, Platão procura substituí-lo pelo plano descritivo e autobiográfico: os temas de seus diálogos costumam ser introduzidos por descrições de paisagens naturais ou narrativas de encontros entre amigos. Essa invasão do território dos conceitos filosóficos, pelo detalhe paisagístico e biográfico, muito embora possa conferir, por um lado, um caráter agradável a seus diálogos, por outro constitui um enfadonho desvio da coerência dos raciocínios lógicos e, portanto, para quem quiser pensar e refletir, representa um elemento de perturbação e fastio. Hegel, mesmo admirando Platão, ficava terrivelmente irritado com essas divagações, tanto que escreveu em suas Lições de História da Filosofia:

"O que torna difícil o estudo da dialética platônica é... sua vontade de mostrar o universal partindo de representações concretas. Esse modo de começar, que parece facilitar o conhecimento, multiplica ao contrário as dificuldades, já que nos leva a um terreno onde o que conta e é ostentado é bem diferente daquilo que vale para a razão. (Hegel, Geschichte der Philosophie, pg. 223)."


Mas, também no plano do estilo, a filosofia platônica ressentiu-se do seu divórcio da retórica. No Górgias, Platão gaba-se várias vezes de que seu estilo filosófico é caracterizado pela brevidade, ou “braquilogia”, e critica com derrisão o estilo retórico, caracterizado pela extensão, ou “macrologia”. Ele se imagina então no ato de exortar Górgias e não seguir seu costume estilístico, mas a responder “com brevidade” (katá brachy) suas perguntas:

"Procure responder com brevidade às perguntas."



No terceiro livro da Retórica Aristóteles caracteriza, com maior pertinência, os dois estilos opostos não como braquilogia e macrologia, mas como “elocução quebrada” (lexis dieireméne) e “elocução concatenada” (lexis katestramméne). Por causa da sua mentalidade dogmática, Platão tende a reduzir as questões filosóficas a uma série de alternativas que comportam apenas dizer sim ou dizer não: grande parte das respostas dos interlocutores dos seus diálogos se reduzem efetivamente a um sim ou a um não. Deste modo, na primeira parte do Górgias, Sócrates consente ao personagem Górgias quase que apenas respostas monossílabas, embora seja ele a dar título ao diálogo. Essa redução de todo raciocínio à alternativa verdadeiro-falso parece quase uma antecipação ante litteram do neopositivismo novecentista, com todos os seus inconvenientes. Se acaso houver um ápice da braquilogia na história do pensamento, tal momento foi constituído pelo Tractatus de Wittgenstein.

Inevitavelmente, a “elocução quebrada”, a braquilogia, age de maneira redutora sobre a riqueza dos problemas afrontados. O próprio mestre de Wittgenstein, Russell, que, em certas ocasiões, acabou por lhe dar razão, exclamou desconsolado:

"Sempre pensei na matemática com devoção, na medida em que ela me proporcionava algo não humano para admirar, e senti uma grande dor quando Wittgenstein induziu-me a considerá-la nada mais que um conjunto de tautologias."


O reducionismo da “elocução quebrada” provoca uma queda análoga da tensão conceitual. Reconheceu-o bem Aristóteles, ao notar que na “elocução concatenada” os diferentes raciocínios voltam-se todos para uma meta final, e por isso prendem a atenção e estimulam a criatividade; enquanto a “elocução quebrada” induz a um pensamento espasmódico, inevitavelmente mais estéril:

"A elocução quebrada é pouco eficaz porque informe; de fato, todos desejam ter em vista a meta."


E precisamente uma resposta do gênero deviam dar os partidários da retórica ao ataque de Platão contra a “macrologia” em nome da “braquilogia”. No próprio Platão é possível encontrar um eco dessa resposta, na objeção que põe na boca de Hípias no Hípias maior:

"Mas, Sócrates, o que achas que tudo isso é? O que propões são palhas da sega, fragmentos de raciocínios, brunidos com o sistema “com brevidade” (katá braquí)."


Essa esterilidade da filosofia privada da retórica foi percebida pelo próprio Platão, que, na verdade, fez um amplo uso da repudiada retórica, de maneira tão evidente quanto inconfessada: o que é hábil edifício dos dez livros da República senão uma complexa “macrologia” edificada com maestria retórico-arquitetônica?

Se quiséssemos resumir tais dificuldades conteudísticas e formais da filosofia, poderíamos reduzi-las àquela que era então e sempre continuou a sê-lo a dificuldade máxima da filosofia: como identificar seu assunto quanto ao conteúdo e, portanto, como identificar seu estilo quanto à forma. É exatamente por sua oposição à retórica que a filosofia vê-se obrigada a tomar consciência dessa sua dificuldade inicial. No começo do Górgias, o personagem Sócrates não percebe – ou talvez finja não perceber – que suas objeções contra a retórica valem antes de tudo contra a filosofia. De fato, Sócrates observa que, se se perguntar a um matemático qual a sua competência específica, este poderá responder: “o par e o ímpar”; se se perguntar a um astrônomo, este poderá responder: “os astros, o sol, a lua”. Ao contrário da aritmética, da astronomia e das outras ciências, a retórica não pode ostentar nenhuma competência específica. Mas acaso não é este o motivo pelo qual justamente a filosofia, da Antiguidade até hoje, sempre teve de defender sua sobrevivência, pretendendo falar de tudo sem ter nenhuma competência específica?

No começo da sua Retórica, Aristóteles, ainda sob a influência de Platão, atribui essa dificuldade apenas à dialética e à retórica:

"A retórica é análoga à dialética: ambas concernem a objetos cujo conhecimento, de certo modo, é próprio de todos os homens, e não de uma ciência específica."


Mas qual é a “ciência específica” que pode caracterizar a filosofia?

Recorrer ao critério verdadeiro-falso, cuja falta Platão critica continuamente na retórica, é de pouca ajuda para assegurar à filosofia um terreno qualquer de competência específica que a torne superior à retórica, que não o possui. O resultado mais positivo a que Platão chega a esse propósito está no Teeteto, onde a filosofia parece ser a competência de saber apenas as diferenças entre os vários argumentos das diversas ciências, isto é, de constituir uma espécie de ciência das ciências:

"Aquele que, já tendo uma opinião clara de todas as coisas que existem, delas apreender, ademais, a característica pela qual essa coisa se distingue das outras, virá a ter dela também o conhecimento, enquanto antes, tinha apenas a opinião."


Esta será uma ilusão que sustentará a filosofia por muito tempo em sua luta secular pela sobrevivência, mas que as próprias ciências, à medida que progridem, tornarão cada vez mais vã. Ainda em meados do século XIX, Comte podia ter a ilusão de que coubesse à filosofia distinguir o âmbito da química do da física, mas hoje, na era da biofísica, essa pretensão tornou-se insustentável: nenhum químico e nenhum físico levariam a sério uma sugestão da filosofia que pretendesse aconselhar-lhes determinada divisão de tarefas.

Assim, a filosofia, se se obstinar a permanecer vinculada a seu propósito anti-retórico de basear-se na rígida oposição do verdadeiro ao falso, nunca encontrará um argumento sobre o qual possa ter a competência específica de sustentar coisas seguramente verdadeiras e não falsas. Diante dessa dificuldade pode parecer oportuna a revalorização da opinião, isto é, de um pensamento não vinculado ao critério verdadeiro-falso, levada a cabo por aquele que, junto com Górgias, também foi protagonista da retórica ateniense, Protágoras. Eis a sua posição, ao menos como transparece no Teeteto platônico.

"Aquele que, por via de uma perspectiva inferior, tem opiniões conformes a ela pode ser induzido por uma perspectiva superior a ter opiniões diversas, conforme a essa perspectiva superior: são justamente as representações que alguns chamam grosseiramente de verdadeiras, enquanto eu digo que são simplesmente melhores do que as outras, não mais verdadeiras."


Esse tipo de avaliação retórica não é, pois, desprovido de critérios avaliatórios, só que seu critério não é rígido e desprovido de graus, como no caso da dicotomia verdadeiro-falso, mas sim um critério agonístico-hierárquico, que admite a possibilidade de uma contínua gradação do melhor ao pior. A esse critério, o retórico siciliano Tísias dera também, junto com Górgias, a denominação técnica de “verossímil”, em grego eikós.

Não deixe de ler o próximo artigo a ser postado: O DESAFIO DO VEROSSÍMIL AO VERDADEIRO.