A Técnica do Antimodelo
RETÓRICA, UMA INTRODUÇÃO
A Técnica do Antimodelo
Devemos aos retóricos latinos a elaboração completa da arte da invenção e das suas técnicas: Cícero escreveu um tratado De Inventione, e a Inventio ocupa sempre a primeira parte dos manuais latinos de retórica. Mas a invenção teorizada pelos latinos se refere predominantemente às argumentações dos debates jurídicos; portanto, uma invenção em tom menor com relação à grande arte grega de inventar conceitos, temas e soluções, a héuresis, que constitui, como já acenamos, o orgulho de Górgias que remontam as primeiras técnicas destinadas a estimular, com meios apropriados, a invenção dos conceitos.
Um técnica inventiva típica da escola de Górgias foi a do antimodelo. Ela parte da convicção de que se, na invenção dos nossos conceitos , nos referimos como ponto de partida a um modelo precedente, iremos espontaneamente imitá-lo e, portanto, será difícil dizer algo original. Essa dificuldade é evidenciada por Quintiliano, que, nesse ponto, faz eco a Górgias no décimo livro da De Instituine oratória:
“O que quer que resulte semelhante a algo precedente é inevitável que seja de menor valor do que o que é imitado; do mesmo modo que a sombra vale menos do que o corpo que a produz, a reprodução vale menos que original, os gestos imitados valem menos que os autênticos”.
Por outro lado, pensar e dizer coisas que jamais foram pensadas ou ditas dificilmente pode alcançar bons resultados. Se um conceito não for apenas uma esquisitice, é impossível que nunca tenha vindo à mente de alguém, ainda que de maneira diferente. Por isso as melhores invenções sempre têm um ponto de partida anterior, como adverte Horácio na Ars Poética:
“rectius Iliacum carmen deducis in actus,
quam si proferes ignota indictaque primus
[Terás maior sucesso se levares à cena o argumento da Ilíada do que se fores o primeiro a representar coisas desconhecidas e jamais expressas em palavras]”.
São as inevitáveis Cila e Caríbidis de quem se baseia na invenção: se parte de um modelo, corre o risco de não ser original; se renuncia a todo e qualquer modelo, corre o risco de conceber coisas estúpidas ou banais. Foi por isso que a retórica gorgiana idealizou, como técnica de invenção, uma terceira via: partir de um antimodelo, e não de um modelo. Ou seja, postamos-nos diante de um produto, um autor, ou uma tendência que se considera inaceitável, de maneira que o esforço para dele nos afastarmos estimule pensamentos e problemas artísticos antitéticos àqueles precedentes negativos.
Foi um discípulo de Górgias, Alcidamante, que inaugurou aquilo que se tornou depois quase uma moda: cada um conceber o seu escrito como reação a um determinado antimodelo. O título do escrito deverá obrigatoriamente, pois, começar com a palavra “Contra...” (em grego Prós). Alcidamante, rival de Isócrates, tomou justamente este como antimodelo e escreveu uma obra intitulada Contra os logógrafos, ou sofistas. Não sabemos se teve êxito nessa técnica, porque a obra nunca chegou até nós. No entanto, a moda dos escritos “contra” divulgou-se amplamente, sobretudo entre os céticos e estóicos. Às vezes o antimodelo é representado por uma categoria de intelectuais, como no Contra os físicos de Tímon de Fliús e nos célebres livros Contra os dogmáticos e Contra os matemáticos de Sexto Empírico; às vezes é um pensador, como no Contra Demócrito e no Contra Erilo do estóico Clentes; outras pode ser um certo tipo de comportamento, como no Contra a sabedoria de Enesidermo de Cnossos. Essa técnica revelou-se tão profícua a ponto de ser com freqüência retomada ao longo dos séculos até os dias de hoje, mantendo-se o costume de indicar a antítese já no título. Basta recordar , no humanismo, o Antibarbarus de Nizólio contra a lógica aristotélica, no Iluminismo, o Anti-Sêneca de Lamettrie, em nossos dias o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari.
O Contra Erilo do filósofo e retórico Cleantes pode exemplificar bem o funcionamento dessa técnica inventiva. Cleantes propunha-se a criar uma nova ética estóica que não se limitasse apenas aos preceitos de Zenão de Cítion, “viva de acordo com a natureza” e “viva de acordo com a razão”. Quem lhe forneceu o ponto de partida foi um aluno de Zenão, Erilo, que sustentara não ser verdade que todas as ações são boas ou más, mas que a maior parte das ações são “indiferentes” (adiáphora), porque não alcançam um grau suficiente de bondade ou ruindade. Tomando a teoria de Erilo como antimodelo, Cleantes elaborou uma teoria não quantificativa dos valores morais. Essa teoria tornou-se conhecida graças a uma metáfora bastante eficaz: do mesmo modo que um homem se afoga tanto se a água lhe chega apenas pouco acima da boca como se acima dele houver mil metros de água, também é condenável um homem tanto roubar uma pequena como uma grande quantia. É provável que se Cleantes não tivesse pensado em aplicar à sua pesquisa filosófica a técnica retórica do antimodelo, não teria conseguido inventar essa teoria, original para o seu tempo, da não-quantificabilidade dos valores morais.
Ms não é só à filosofia que a retórica pode emprestar, como instrumento heurístico, a técnica do antimodelo. Já no século II d.C. essa técnica estava vastamente difundida entre os artistas, intelectuais e narradores de diversos tipos. O geógrafo Pausânias (cerca de 150 d.C.) conta que obrigava seus discípulos a ouvir um mau instrumentista que morava em frente à sua casa para que aprendessem a detestar suas desafinações e seus tempos errados. E a grande divulgação dos relatos de viagem de Pausânias fez com que essa sua exortação a partir de modelos negativos continuasse a ser repetida séculos depois. Ainda Montaigne a recorda em seus Ensaios, onde a legitima e a desenvolve:
“Quem pensa o oposto de mim não me aborrece, nem me irrita: ao contrário, me estimula e me exercita”.
A Técnica do Antimodelo
Devemos aos retóricos latinos a elaboração completa da arte da invenção e das suas técnicas: Cícero escreveu um tratado De Inventione, e a Inventio ocupa sempre a primeira parte dos manuais latinos de retórica. Mas a invenção teorizada pelos latinos se refere predominantemente às argumentações dos debates jurídicos; portanto, uma invenção em tom menor com relação à grande arte grega de inventar conceitos, temas e soluções, a héuresis, que constitui, como já acenamos, o orgulho de Górgias que remontam as primeiras técnicas destinadas a estimular, com meios apropriados, a invenção dos conceitos.
Um técnica inventiva típica da escola de Górgias foi a do antimodelo. Ela parte da convicção de que se, na invenção dos nossos conceitos , nos referimos como ponto de partida a um modelo precedente, iremos espontaneamente imitá-lo e, portanto, será difícil dizer algo original. Essa dificuldade é evidenciada por Quintiliano, que, nesse ponto, faz eco a Górgias no décimo livro da De Instituine oratória:
“O que quer que resulte semelhante a algo precedente é inevitável que seja de menor valor do que o que é imitado; do mesmo modo que a sombra vale menos do que o corpo que a produz, a reprodução vale menos que original, os gestos imitados valem menos que os autênticos”.
Por outro lado, pensar e dizer coisas que jamais foram pensadas ou ditas dificilmente pode alcançar bons resultados. Se um conceito não for apenas uma esquisitice, é impossível que nunca tenha vindo à mente de alguém, ainda que de maneira diferente. Por isso as melhores invenções sempre têm um ponto de partida anterior, como adverte Horácio na Ars Poética:
“rectius Iliacum carmen deducis in actus,
quam si proferes ignota indictaque primus
[Terás maior sucesso se levares à cena o argumento da Ilíada do que se fores o primeiro a representar coisas desconhecidas e jamais expressas em palavras]”.
São as inevitáveis Cila e Caríbidis de quem se baseia na invenção: se parte de um modelo, corre o risco de não ser original; se renuncia a todo e qualquer modelo, corre o risco de conceber coisas estúpidas ou banais. Foi por isso que a retórica gorgiana idealizou, como técnica de invenção, uma terceira via: partir de um antimodelo, e não de um modelo. Ou seja, postamos-nos diante de um produto, um autor, ou uma tendência que se considera inaceitável, de maneira que o esforço para dele nos afastarmos estimule pensamentos e problemas artísticos antitéticos àqueles precedentes negativos.
Foi um discípulo de Górgias, Alcidamante, que inaugurou aquilo que se tornou depois quase uma moda: cada um conceber o seu escrito como reação a um determinado antimodelo. O título do escrito deverá obrigatoriamente, pois, começar com a palavra “Contra...” (em grego Prós). Alcidamante, rival de Isócrates, tomou justamente este como antimodelo e escreveu uma obra intitulada Contra os logógrafos, ou sofistas. Não sabemos se teve êxito nessa técnica, porque a obra nunca chegou até nós. No entanto, a moda dos escritos “contra” divulgou-se amplamente, sobretudo entre os céticos e estóicos. Às vezes o antimodelo é representado por uma categoria de intelectuais, como no Contra os físicos de Tímon de Fliús e nos célebres livros Contra os dogmáticos e Contra os matemáticos de Sexto Empírico; às vezes é um pensador, como no Contra Demócrito e no Contra Erilo do estóico Clentes; outras pode ser um certo tipo de comportamento, como no Contra a sabedoria de Enesidermo de Cnossos. Essa técnica revelou-se tão profícua a ponto de ser com freqüência retomada ao longo dos séculos até os dias de hoje, mantendo-se o costume de indicar a antítese já no título. Basta recordar , no humanismo, o Antibarbarus de Nizólio contra a lógica aristotélica, no Iluminismo, o Anti-Sêneca de Lamettrie, em nossos dias o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari.
O Contra Erilo do filósofo e retórico Cleantes pode exemplificar bem o funcionamento dessa técnica inventiva. Cleantes propunha-se a criar uma nova ética estóica que não se limitasse apenas aos preceitos de Zenão de Cítion, “viva de acordo com a natureza” e “viva de acordo com a razão”. Quem lhe forneceu o ponto de partida foi um aluno de Zenão, Erilo, que sustentara não ser verdade que todas as ações são boas ou más, mas que a maior parte das ações são “indiferentes” (adiáphora), porque não alcançam um grau suficiente de bondade ou ruindade. Tomando a teoria de Erilo como antimodelo, Cleantes elaborou uma teoria não quantificativa dos valores morais. Essa teoria tornou-se conhecida graças a uma metáfora bastante eficaz: do mesmo modo que um homem se afoga tanto se a água lhe chega apenas pouco acima da boca como se acima dele houver mil metros de água, também é condenável um homem tanto roubar uma pequena como uma grande quantia. É provável que se Cleantes não tivesse pensado em aplicar à sua pesquisa filosófica a técnica retórica do antimodelo, não teria conseguido inventar essa teoria, original para o seu tempo, da não-quantificabilidade dos valores morais.
Ms não é só à filosofia que a retórica pode emprestar, como instrumento heurístico, a técnica do antimodelo. Já no século II d.C. essa técnica estava vastamente difundida entre os artistas, intelectuais e narradores de diversos tipos. O geógrafo Pausânias (cerca de 150 d.C.) conta que obrigava seus discípulos a ouvir um mau instrumentista que morava em frente à sua casa para que aprendessem a detestar suas desafinações e seus tempos errados. E a grande divulgação dos relatos de viagem de Pausânias fez com que essa sua exortação a partir de modelos negativos continuasse a ser repetida séculos depois. Ainda Montaigne a recorda em seus Ensaios, onde a legitima e a desenvolve:
“Quem pensa o oposto de mim não me aborrece, nem me irrita: ao contrário, me estimula e me exercita”.
Em nossos dias, Perlman notou como a técnica do antimodelo conjuga a vantagem de estimular a inventividade ao contrário com a de não excluir a possibilidade de derivar alguma idéia ou algum procedimento parcial precisamente do próprio antimodelo.
“É sabido que competição desenvolve a semelhança entre antagonistas, que acabam tomando um do outro todos os procedimentos eficazes”.
“É sabido que competição desenvolve a semelhança entre antagonistas, que acabam tomando um do outro todos os procedimentos eficazes”.
Por esses motivos, a antiga retórica grega considerava muito mais profícuo para a invenção a partir de um antimodelo do que renunciar a um ponto de partida. Essa convicção constituirá a base do preceito de Quintiliano, que prescreve usus aliarum rerum ad ereudas alias, “a exploração de idéias alheias para inventar novas idéias”. Já Aristófanes, quando queria parodiar os antagonismos retóricos entre dois contendores, fazia de modo que aquele fadado à vitória falasse em segundo lugar, derivando assim seus conceitos da confutação do primeiro.
O caso mais famoso é o da oposição entre o Discurso Justo e o Discurso Injusto nas Nuvens, onde o Discurso Injusto, destinado a derrotar seu adversário, se recusa a falar em primeiro, já que pretende inventar suas argumentações com base nas do adversário:
“coro – Quem quer tomar a palavra primeiro?
Discurso Injusto – Cedo a minha vez. Depois que ele falar, eu o acossarei, atingindo-o com palavras novas e conceitos novos... Arrasá-lo-ei com minhas razões!”.
O caso mais famoso é o da oposição entre o Discurso Justo e o Discurso Injusto nas Nuvens, onde o Discurso Injusto, destinado a derrotar seu adversário, se recusa a falar em primeiro, já que pretende inventar suas argumentações com base nas do adversário:
“coro – Quem quer tomar a palavra primeiro?
Discurso Injusto – Cedo a minha vez. Depois que ele falar, eu o acossarei, atingindo-o com palavras novas e conceitos novos... Arrasá-lo-ei com minhas razões!”.
De fato, depois que o Discurso Injusto levou a cabo esses seus propósitos, a conclusão foi a derrota do seu antimodelo:
“Discurso Justo – Estou derrotado”.
“Discurso Justo – Estou derrotado”.
Devia ser exemplar a esse respeito a comédia de Epicarmo, O Discurso e a Discursa, Logos kái loguína, da qual, infelizmente, só chegaram até nós três breves fragmentos. Levando-se em conta a constante misoginia que caracteriza os comediógrafos gregos, não é difícil imagina que foi a Duscursa que serviu de antimodelo, intervindo despropositadamente em todas as conversas; e que, apesar disso, o Discurso tenha encontrado pontos de partida razoáveis até mesmo nas insensatezes da interlocutora.
Como se vê, a técnica do antimodelo se bifurca em duas possibilidades: a dos escritos “contra”, que os alemães chamam de Steitschriften, e a de introduzir uma oposição dialógica dentro de um mesmo escrito. Ambas fazem parte daquele aspecto polêmico , que vimos, caracteriza em boa parte o estilo retórico. Existem, porém, outros tipos de artes inveniendi, que se efetuam através de procedimentos positivos.
O próximo artigo desta série é A ITERAÇÃO DOS CONCEITOS
RETORNAR AO ÍNDICE DE RETÓRICA, UMA INTRODUÇÃO
Como se vê, a técnica do antimodelo se bifurca em duas possibilidades: a dos escritos “contra”, que os alemães chamam de Steitschriften, e a de introduzir uma oposição dialógica dentro de um mesmo escrito. Ambas fazem parte daquele aspecto polêmico , que vimos, caracteriza em boa parte o estilo retórico. Existem, porém, outros tipos de artes inveniendi, que se efetuam através de procedimentos positivos.
O próximo artigo desta série é A ITERAÇÃO DOS CONCEITOS
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