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sexta-feira, julho 14, 2006

Estilo Retórico e Estilo Filosófico

Este é o 4º artigo da série Retórica. Os três primeiros são:

01 - A Contenda Original
02 - O Repúdio da Retórica e as Dificuldades da Filosofia
03 - O Desafio do Verossímil ao Verdadeiro


Citamos pouco acima a Lógica da descoberta científica, de Popper (1934), que teve o mérito de ligar os procedimentos da descoberta mais à lógica do verossímil do que à lógica do verdadeiro. Popper todavia não hesitava em se unir ao coro dos que, nos anos 30, ainda desprezavam os procedimentos retóricos, como indignos da dignidade da ciência. Mas no ano seguinte ao aparecimento do seu livro, em 1935, houve um epistemologista, muito menos conhecido, Ludwg Fleck, que propôs uma teoria dos estilos de pensamento, a qual retomava a antiga controvérsia entre Górgias e Platão, entre retórica e filosofia, entre verossímil e verdadeiro. Escreve Fleck em seu ensaio Por uma teoria do estilo e da comparação de pensamento:

“As concepções não são sistemas lógicos – por mais que desejam sê-lo -, mas unidades providas de um estilo, que como tais se desenvolvem, se atrofiam ou morrem, com suas provas, no interior de outras concepções... Uma das tarefas mais importantes da teoria do conhecimento comparado deveria ser pesquisar modo como concepções e idéias pouco claras passam de um estilo de pensamento a outro”.

O conceito de estilo, entendido à maneira de Fleck, presta-se bastante bem para designar o dilema entre retórica e filosofia, que surgiu no início dos séculos IV a.C. e que hoje volta a ser atual: mais que duas ciências em conflito, retórica e filosofia são duas maneiras diferentes de enfrentar de modo não diletante os temas cuja abordagem não é a engenharia monopólio de uma ciência específica (como a bioquímica, a engenharia eletrônica etc.). Esse uso o termo “estilo” já estava presente, de resto, inclusive em autores do mundo oitocentista, p. ex., em Flaubert, que escreveu numa carta a Taine:

Le style n’est qu’une manière de penser
[O estilo é tão só uma maneira de pensar]

E se quiséssemos caracterizar o estilo retórico, tal como se apresenta em sua primeira oposição ao estilo filosófico, poderia ser-nos útil a teoria expressa no fim do século por Adolf Hindelbrand (Das Problem der Form in der bildenden Kunst, 1893), que distingue o estilo da visão de longe, Fernbild, do estilo da visão de perto, Nahebild. A retórica é caracterizada por um estilo que visa a determinar um tema, apresentá-lo em seu peso cultural e humano, propor uma solução para ele: enquanto tal, é um estilo de Fernbild. A filosofia, por sua vez, embora visando ao universal, aspira a dar ao tema um tratamento analítico, através de um estilo de Nahebild. Se a coisa é evidente quando ser compara um escrito de Górgias com um de Aristóteles, menos evidente resulta se se confronta Górgias com Platão. Mas, aqui, a causa da oposição menos acentuada é justamente a forte presença de um estilo retórico inclusive no interior da filosofia de Platão.

Já Aristóteles fazia essa distinção de maneira lapidar no segundo livro da Metafísica: a retórica, mais fácil que a filosofia, é comparável a quem saiba alvejar uma porta com um arco, enquanto a filosofia é comparável a quem a saiba analisar em seus detalhes:

Se, em relação à verdade, as coisas parecem estar como no provérbio que diz “quem não saberia alvejar uma porta?”, então é mais fácil; contudo o fato de que, embora possuindo da porta uma visão de conjunto, não estejamos em condições de conhecê-la em suas partes indica que a empresa é mais difícil.

Típico de uma visão de conjunto, como a da retórica, é ela estar muito mais sujeita às diversidades dos pontos de vista do que a visão de perto. A porta citada por Aristóteles aparece segundo perspectivas bem diferentes para quem tiver um Fernbild de cima, da direita ou da esquerda, enquanto para quem a examinar de perto as diferenças de perspectiva serão quase inexistentes. Por isso, no trecho supracitado do primeiro livro da Retórica, Aristóteles caracteriza o eikós retórico como “universal com relação a...” O que é, precisamente, um universal perspectivo.

Essa natureza perspéctica do estilo retórico lhe confere aquela sua típica capacidade agonística de se contrapor a um adversário, na qual individuamos desde o início sua primeira diferenciação do estilo filosófico. Isso não significa que os filósofos não gostem de polemizar com seus colegas (ao contrário), mas, que nos textos de filosofia as partes polêmicas são aquelas em que o estilo filosófico dá mais facilmente lugar ao estilo retórico.

Foi precisamente com o estilo retórico que a filosofia aprendeu alguma das suas estratégias polêmicas, como as descritas por Aristóteles nas Confutações Sofísticas. Eis uma delas:

“A que se exprime em conformidade com a natureza é bom contrapor uma argumentação conforme à lei; já adiante de quem se exprime em conformidade com a lei é bom empregar uma argumentação dirigida para a natureza.”

Nesse sentido, assim como é célebre a distinção da Poética aristotélica entre a poesia e a história (“o historiador fala das coisas que aconteceram, o poeta, das coisas como poderiam acontecer”), é igualmente digna de nota a distinção que Quintiliano, no oitavo livro de De institutione oratoria, estabelece a retórica e a história. Ele sustenta que, enquanto é tarefa dos historiadores limitar-se a narrar, é oportuno que

“nos rhetores armatos stare in acie
[nós, retóricos, estejamos sempre em pé de guerra]

Por isso, seguindo o mestre, o discípulo de Quintiliano, Plínio, o Jovem, falou de um “estilo combativo!”, stilus pugnax, que, se bem não se forma exclusiva, caracteriza o estilo retórico.

Nesse sentido, o estilo retórico, como estilo constitucionalmente competitivo, tem como seu antagonista radical não tanto o estilo filosófico quanto o estilo dialético. Dissemos, de fato, que a dialética se caracteriza essencialmente pela sua natureza colaborativa, e a colaboração é o oposto da competição. Na dialética, uma determinada tese se contrapõe às outras não, como na retórica, para vencê-la e afirmar a sua superioridade, mas para, juntas, procura superar o antagonismo numa nova visão, que tenha se possível a concordância de todos. Esse procedimento foi teorizado lucidamente por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco:

“Um é levado para a direção, outro para outra... É preciso então que cada um se mova na direção oposta à sua; assim cada um se afastando da uniteralidade alcançará o meio-termo, como fazem os que querem endireitar os paus tortos”.

Deve-se indubitavelmente a Hegel e ao marxismo de tipo hegeliano o fato de esse estilo dialético ter-se tornado nos últimos duzentos anos um dos procedimentos mais exuberantes – mas, por vezes, também um tremendo peso – do pensamento contemporâneo. Hegel descobriu que visar à superação das contradições, o que é típico da dialética, pode conjugar-se de forma feliz com a fé no progresso da história. De fato, acreditar no irrefreável progresso da história significa acreditar que as contradições do presente possam dar lugar às realizações do futuro.

O prefácio à Fenomenologia do espírito chegou a personificar o stilus pugnax, cavalo de batalha da retórica, e o stijos conciliandi, próprio da dialética, nas duas faculdades humanas do intelecto e da razão. O intelecto, faculdade da dissensão, é para Hegel uma faculdade preciosa como estímulo, mas deletéria se se perseverar na dissensão:

“A atividade de separar é a força e o trabalho do intelecto;... que o acidental ut sic, separado do que o circunda... defenda a sua existência determinada... tudo isso é a força gigantesca do negativo”.

Portanto, para Hegel, a combatividade negativa da retórica só poderia adquirir utilidade confluindo para o estilo colaborativo da dialética. Segundo ele, a utilidade da negação e da contradição está essencialmente em revelar a insustentabilidade do presente e em prenunciar dialeticamente o futuro:

“A fatuidade e o tédio que tomam conta do que subsiste ao presente, o pressentimento indeterminado de um ignoto são os sinais anunciadores de algo diferente que está em marcha”.

Essa perspectiva dialética de Hegel (e do primeiro Marx) revelou-se inegavelmente mais uma ilusão do que uma via mestra. Também um marxista hegeliano do nosso século, como Ernst Bloch, veio a definir o estilo dialético como “um moinho que faz barulho mas não mói o grão”.

A acusação de Bloch é bem fundada: a dialética pretende possuir um esquema infalível – que sempre se reduz, inclusive em suas múltiplas variantes, à conciliação dos contrários -, e pretende que seja possível aplicar esse esquema monótono às mais diversas situações. Isso gera inevitavelmente um formalismo vazio, justamente aquele formalismo que Platão, amigo da dialética, criticava na retórica. O mundo do pensamento é muito mais variado e imprevisível do que os pedaços de pau de que fala Aristóteles no trecho citado. Claro, se um pau entortou para a esquerda, para endireitá-lo convém virá-lo para a direita. Ms, por exemplo, tentar-se-ia em vão endireitar um pensamento que pendesse excessivamente no sentido da morte, como o de Heidegger, temperando-o com um tipo qualquer de vitalismo. Nesse caso, é mais produtivo apresentar nitidamente a oposição competitiva de um discurso e de um antidiscurso, à maneira da retórica antiga.

Aconteceu porém que tanto o stilus pugnax da retórica quanto o stilus conciliandi da dialética influíram em todos os tempos sobre o estilo filosófico. Ou melhor, o procedimento filosófico caracterizou-se com freqüência porque prevalecia nele ou o estilo retórico combativo, ou o estilo dialético conciliatório. Assim, surpreendentemente, aconteceu que, em Platão, inimigo ferrenho da retórica, é precisamente o polêmico estilo retórico que prevalece, enquanto Aristóteles e Hegel, para nada inimigos da retórica, fazem prevalecer em seus escritos um estilo dialético: Aristóteles por sua tendência a procurar o “meio-termo”, Hegel por sua busca da “síntese” acima de toda e qualquer contenda. Todavia a prevalência do estilo dialético não é capaz de eliminar, na filosofia, a presença do estilo retórico: basta pensar na agressividade bem retórica com que, na Fenomenologia, Hegel ataca tanto os românticos como Schelling.

Resumindo, em relação ao estilo filosófico, o estilo retórico se apresenta com três características essenciais: antes de mais nada, um sentido hierárquico dos temas e das soluções, que leva a busca de maneira agonística o que for mais eficaz do ponto de vista conceitual, independentemente do critério do verdadeiro e do falso; depois, a tendência a considerar temas e soluções em sua globalidade e, por isso, na sua apresentação perspectiva segundo os diversos pontos de vista; finalmente, a agressividade polêmica pela qual todo tema e toda solução sempre são considerados competitivos em relação a outros temas e soluções opostos. Agonismo, globalidade, polêmica bastam para caracterizar um estilo de pensamento. Foi precisamente assim que nasceu o estilo retórico na época de Górgias, e assim ele entrou em rivalidade tanto com a filosofia como com a dialética. Mas tal estilo se reduziria a um formalismo vazio se não agisse em função da criatividade conteudística que tem em mira, isto é, a invenção dos temas e das soluções.

Nem sempre, porém, no decorrer da sua história a retórica dirigiu seu estilo para a invenção dos conceitos. E quando não o fez tornou-se como aquele “moinho que faz barulho mas não mói o grão”, de que falava Bloch acerca da dialética hegeliana. Isso contribuiu para criar aquela má fama de formalismo vazio que tanto a prejudicou. A arte de inventar é, pois, a arma indispensável com que a retórica pode resgatar seu estilo do perigo do formalismo, conferindo-lhe aquela vitalidade que faz dela um rival direto do estilo filosófico. Por isso é oportuno que nós também dermos precedência à arte da invenção como ponto de partida ideal da retórica mais válida.

O próximo artigo desta série é A TÉCNICA DO ANTIMODELO