O Desafio do Verossímil ao Verdadeiro
Não há motivo par pôr em dúvida o testemunho do Fedro platônico, segundo o qual
"Tísias e Górgias afirmaram que o verossímil merece mais apreço que o verdadeiro".
Assim expressa, essa asserção parece um mero paradoxo: é como dizer que o que é semelhante ao belo é superior ao belo, ou o que é semelhante ao útil é superior ao útil. Mas na realidade, a responsabilidade por tal paradoxo cabe, sobretudo, à tradução latina da Rhetorica ad Herennium (II-I séc. a.C.), que traduz eikós por veri similis e que foi seguida por toda a tradição retórica latina (Cícero, Sêneca, Quintiliano), que até nós condiciona a traduzir por “verossímil”.
Mas o significado prenhe de eikós não indica o que, em vez de verdadeiro, é apenas semelhante ao verdadeiro, mas significa aquilo que é “segundo a razão” ou, melhor, “segundo a racionalidade”. De fato, quando quer dar um exemplo de eikós nos Primeiros Analíticos, Aristóteles diz:
"Por exemplo, é eikós que os inimigos odeiem e os enamorados amem".
Nesse sentido têm razão Tísias e Górgias quando afirmam: dizer que é eikós que Alcibíades ame Sócrates é algo mais importante do que dizer que é verdadeiro que Alcibíades ame Sócrates. Significa, com efeito, que é essa a atitude que esperamos de Alcibíades segundo determinada forma de racionalidade, de coerência, de modelo de vida.
Ao contrário, o verdadeiro sem o verossímil é, com freqüência, impotente. Ésquilo personificou essa impotência na figura de Cassandra, que em vão, no Agamênnon, procura convencer os presentes da trágica verdade que paira, mas que a cada ouvinte parece inverossímil. Isso acontece não só na poesia, mas também na ciência. Basta pensar na provocativa asserção do filósofo da ciência Hans Reichenbach, que, para afirmar o critério do “verdadeiro” (aquele que, em lógica, chama-se “verdadeiro funcional”) como único critério legítimo, escreveu em 1951 que no monólogo de Hamlet
"Na realidade “ser ou não ser” não é em absoluto um problema, é apenas uma tautologia".
O que escapa a Reichenbach é precisamente o aspecto agonístico (de uma luta consigo mesmo) do dilema de Hamlet: avaliar que aspecto pertence ao critério do eikós, o qual pode por isso gabar-se de ser superior ao critério do verdadeiro. Para o critério lógico do verdadeiro não pode haver diferença entre a expressão de Hamlet “ser ou não ser” e expressões claramente tautológicas como “chove ou não chove”, “o Juventus ganhou ou não ganhou”, ou como Caetano Veloso “o amor é lindo, ou não”. Mantendo, pois, a tradução tradicional de eikós como “verossímil”, dever-se-á dizer então, como Tísias e Górgias, que o verossímil merece maior apreço do que o verdadeiro?
Que nas ciências exatas valha o contrário é inegável: dizer que a água gela a zero graus é por certo melhor do que dizer que é verossímil (ou razoável, ou provável) que a água gele a zero graus. Mas as coisas mudam quando não está em questão uma simples alternativa verdadeiro-falso, mas uma série de possibilidades, em ordem hierárquica de importância. A propósito, é típica a anedota da dona-de-casa que nega ter deixado de devolver um vaso por tê-lo quebrado, citado por Freud em seu conhecido Os chistes e Sua Relação com o Inconsciente (1905):
"Em primeiro lugar, nunca vi esse vazo; em segundo lugar, nunca o tomei emprestado; em terceiro lugar, já o devolvi; enfim, já estava quebrado quando o peguei".
Pela maneira como se contradiz, a autodefesa da dona-de-casa resulta cômica. Com efeito, sua segunda asserção (“nunca o tomei emprestado”) contradiz a primeira, de não saber sequer de que vaso se trata; a terceira asserção (“já o devolvi”) contradiz a primeira e a segunda; enfim a quarta asserção (“já estava quebrado quando o peguei”) contradiz tanto a primeira, como a segunda e a terceira. No entanto, se a dona-de-casa enuncia em tempos sucessivos suas quatro asserções, mostra-se idônea não do ponto de vista de uma verdade absoluta, mas hierárquico-agonística, que é a do eikós. De fato, a possível verdade das quatro afirmações está em ordem hierárquica decrescente: nunca ter visto o vaso é a eventualidade que tem maior peso para a autodefesa, enquanto a desculpa de tê-lo encontrado quebrado é o expediente mais fraco de todos.
Essa diferente eficácia das asserções verossímeis era chamada pelos retóricos gregos de seu “peso”, ónkos, termo que a retórica latina traduzia por pondus. O pior defeito de uma asserção é ser enunciada “neglecto rerum pondere et viribus sententiarum” [sem levar em conta o peso dos fatos e a força dos conceitos].
É o que escreve Quintiliano no nono livro de De Institutione Oratória. Ele chegava a pretender que a retórica latina pudesse ser superior à grega, pois, se os gregos venciam na sutileza das asserções verossímeis, os latinos podiam superá-los precisamente no “peso” delas:
"subtilitate vincimur, valeamus pondere!
[vencem-nos em sutileza, e nós os vencemos em peso!]".
Seria possível afirmar que esse conceito de “peso” das asserções e dos temas (como também dos problemas e das soluções) tem pouca cientificidade, sobretudo se contraposto a critério verdadeiro-falso que durante séculos foi o eixo de toda pesquisa científica. Todavia essa primeira aparência é hoje desmentida pelos fatos, em particular pela epistemologia destes últimos vinte anos. Um dos mais conhecidos epistemologistas americanos vivos, Larry Laudan, embasou seu tratado de 1977, Progress and its Problems, precisamente no conceito de uma “pesagem cognitivamente racional dos problemas científicos”.
Não se trata porém de um fenômeno exclusivo do nosso século, já que o próprio Descartes, no século XVII, mostrou, em suas pesquisas específicas de mecânica, guiar-se mais por uma avaliação do peso dos problemas do que pelo critério da verdade absoluta. Tal avaliação foi determinante para que sua física elevasse os problemas do choque e da colisão dos corpos, da posição totalmente marginal em que se encontravam na física precedente a uma posição central no estudo da mecânica. Isso se deveu sobretudo a uma “ponderação” das vantagens cognitivas que verossimilmente essa mudança de postura teria acarretado.
Esse comportamento é ainda mais significativo por provir daquele Descartes que partira do propósito metodológico de deixar de lado tudo o que não fosse certeza absoluta. Seus Princípios de Filosofia começam afirmando que “será útil considerar falsas inclusive as coisas que são apenas verossímeis”.
Mas já no Discurso do Método ele recuava para uma posição menos rigorosa, que admitia também o emprego do verossímil:
"Como freqüentemente as ações da vida não admitem temporizações, então, quando não nos é possível discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais verossímeis".
Quando se propôs descobrir novos princípios mecânicos, já não lhe bastaram nem o critério do verdadeiro absoluto nem o do verossímil: ele adotou, para os problemas do choque dos corpos, o critério pragmático da ponderação dos problemas.
A atitude inicial de Descartes lembra muito a do Sócrates platônico no Teeteto, para o qual todas as opiniões apenas verossímeis devem ser consideradas falsas, porque carecem daquele caráter de necessidade que é próprio apenas de ciência:
"A mera opinião não pode ser conhecimento, pois pode haver também opiniões falsas".
Tanto o rigorismo metódico inicial de Descartes como o rigorismo anti-retórico do Teeteto platônico são comparáveis à ingenuidade de quem acredita que o progresso científico possa ser produzido pelos computadores, os únicos que nunca erram. Mas, ao menos no estado atual, a simples memorização do verdadeiro e do falso não está em condições de produzir a inventividade da descoberta.
Na Antiguidade, quem impôs essa exigência foi justamente um discípulo de Górgias, Isócrates, personagem ainda mais emblemático por ser o único retórico a quem Sócrates reconhece, no final do Fedro, um talento filosófico. Quatro anos antes do aparecimento do Górgias platônico, em 391 a.C., Contra os Sofistas, manifesto programático da sua escola retórica, Isócrates escrevia:
"Enquanto para compor corretamente as letras do alfabeto não são necessárias outras capacidades [além de não cometer erros], para criar um discurso interessante é preciso ser pertinente ao argumento e original".
A pertinência (em grego kairós) também poderá vir a ser programada por um cérebro eletrônico, mas programar a originalidade é uma contradição em termos.
Foi nessa oposição que Karl Popper baseou, em 1934, sua teoria da descoberta científica. Num momento em que o neopositivismo vienense queria impor a toda a ciência o embasamento na análise lógica, que se limita a distinguir o verdadeiro do falso, ele advertia que o ato de conceber e inventar uma teoria não é suscetível de nenhuma análise lógica.
Por outro lado, porém, segundo Isócrates, apenas a originalidade não basta se não for conjugada a pertinência às circunstâncias; por isso, o verossímil (eikós) é síntese de invenção (héuresis) e de oportunidade (kairós). Isto é, se inventarmos conceitos não pertinentes a uma realidade efetiva teremos uma mera fantasia desprovida de realidade, do mesmo modo que se nos limitarmos a registrar o que é seguramente verdadeiro na realidade não teremos sequer aquele lampejo de inteligência que nos faz compreender – e não só registrar – a realidade. Parece ter sido este o pensamento de Górgias no fragmento que nos é citado por Proclo:
"a realidade fica obscura se não se torna aparência, mas a aparência é inconsistente se não for pertinente à realidade".
Todavia a realidade que consegue ser ao mesmo tempo aparência não é o verdadeiro, e sim o verossímil.
Aristóteles, que revalorizou a retórica, embora não negando a superioridade da filosofia, pretende pôr fim ao antagonismo entre o verdadeiro e o verossímil sustentando que o verdadeiro é o “universal absoluto”, enquanto o verossímil é o “universal com relação a” alguma coisa:
"O eikós é aquilo que acontece normalmente, mas não em absoluto [haplós], como consideram alguns; é aquilo que, nas coisas que poderiam ser de outro modo, está para o que [prós hó] se refere como o universal para o particular".
Contudo essa relatividade do universal retórico é precisamente o fator que lhe permite representar um papel agonístico, proibido ao verdadeiro. A hipótese cosmológica dos “buracos negros”, fagocitosa matéria, é certamente uma idéia universal, mas só com relação à teoria da antimatéria; já para quem optar pela teoria da realidade como tríade próton-elétron-nêutron, a teoria dos buracos negros perde o valor. Poder-se-ia dizer, portanto, que a teoria dos buracos negros é um universal agonístico, um eikós, e estudar as modalidades e as possibilidades do seu agonismo pode ser objeto de uma nova retórica.
Em breve, o próximo artigo desta série: ESTILO RETÓRICO E ESTILO FILOSÓFICO. Aguardem!
"Tísias e Górgias afirmaram que o verossímil merece mais apreço que o verdadeiro".
Assim expressa, essa asserção parece um mero paradoxo: é como dizer que o que é semelhante ao belo é superior ao belo, ou o que é semelhante ao útil é superior ao útil. Mas na realidade, a responsabilidade por tal paradoxo cabe, sobretudo, à tradução latina da Rhetorica ad Herennium (II-I séc. a.C.), que traduz eikós por veri similis e que foi seguida por toda a tradição retórica latina (Cícero, Sêneca, Quintiliano), que até nós condiciona a traduzir por “verossímil”.
Mas o significado prenhe de eikós não indica o que, em vez de verdadeiro, é apenas semelhante ao verdadeiro, mas significa aquilo que é “segundo a razão” ou, melhor, “segundo a racionalidade”. De fato, quando quer dar um exemplo de eikós nos Primeiros Analíticos, Aristóteles diz:
"Por exemplo, é eikós que os inimigos odeiem e os enamorados amem".
Nesse sentido têm razão Tísias e Górgias quando afirmam: dizer que é eikós que Alcibíades ame Sócrates é algo mais importante do que dizer que é verdadeiro que Alcibíades ame Sócrates. Significa, com efeito, que é essa a atitude que esperamos de Alcibíades segundo determinada forma de racionalidade, de coerência, de modelo de vida.
Ao contrário, o verdadeiro sem o verossímil é, com freqüência, impotente. Ésquilo personificou essa impotência na figura de Cassandra, que em vão, no Agamênnon, procura convencer os presentes da trágica verdade que paira, mas que a cada ouvinte parece inverossímil. Isso acontece não só na poesia, mas também na ciência. Basta pensar na provocativa asserção do filósofo da ciência Hans Reichenbach, que, para afirmar o critério do “verdadeiro” (aquele que, em lógica, chama-se “verdadeiro funcional”) como único critério legítimo, escreveu em 1951 que no monólogo de Hamlet
"Na realidade “ser ou não ser” não é em absoluto um problema, é apenas uma tautologia".
O que escapa a Reichenbach é precisamente o aspecto agonístico (de uma luta consigo mesmo) do dilema de Hamlet: avaliar que aspecto pertence ao critério do eikós, o qual pode por isso gabar-se de ser superior ao critério do verdadeiro. Para o critério lógico do verdadeiro não pode haver diferença entre a expressão de Hamlet “ser ou não ser” e expressões claramente tautológicas como “chove ou não chove”, “o Juventus ganhou ou não ganhou”, ou como Caetano Veloso “o amor é lindo, ou não”. Mantendo, pois, a tradução tradicional de eikós como “verossímil”, dever-se-á dizer então, como Tísias e Górgias, que o verossímil merece maior apreço do que o verdadeiro?
Que nas ciências exatas valha o contrário é inegável: dizer que a água gela a zero graus é por certo melhor do que dizer que é verossímil (ou razoável, ou provável) que a água gele a zero graus. Mas as coisas mudam quando não está em questão uma simples alternativa verdadeiro-falso, mas uma série de possibilidades, em ordem hierárquica de importância. A propósito, é típica a anedota da dona-de-casa que nega ter deixado de devolver um vaso por tê-lo quebrado, citado por Freud em seu conhecido Os chistes e Sua Relação com o Inconsciente (1905):
"Em primeiro lugar, nunca vi esse vazo; em segundo lugar, nunca o tomei emprestado; em terceiro lugar, já o devolvi; enfim, já estava quebrado quando o peguei".
Pela maneira como se contradiz, a autodefesa da dona-de-casa resulta cômica. Com efeito, sua segunda asserção (“nunca o tomei emprestado”) contradiz a primeira, de não saber sequer de que vaso se trata; a terceira asserção (“já o devolvi”) contradiz a primeira e a segunda; enfim a quarta asserção (“já estava quebrado quando o peguei”) contradiz tanto a primeira, como a segunda e a terceira. No entanto, se a dona-de-casa enuncia em tempos sucessivos suas quatro asserções, mostra-se idônea não do ponto de vista de uma verdade absoluta, mas hierárquico-agonística, que é a do eikós. De fato, a possível verdade das quatro afirmações está em ordem hierárquica decrescente: nunca ter visto o vaso é a eventualidade que tem maior peso para a autodefesa, enquanto a desculpa de tê-lo encontrado quebrado é o expediente mais fraco de todos.
Essa diferente eficácia das asserções verossímeis era chamada pelos retóricos gregos de seu “peso”, ónkos, termo que a retórica latina traduzia por pondus. O pior defeito de uma asserção é ser enunciada “neglecto rerum pondere et viribus sententiarum” [sem levar em conta o peso dos fatos e a força dos conceitos].
É o que escreve Quintiliano no nono livro de De Institutione Oratória. Ele chegava a pretender que a retórica latina pudesse ser superior à grega, pois, se os gregos venciam na sutileza das asserções verossímeis, os latinos podiam superá-los precisamente no “peso” delas:
"subtilitate vincimur, valeamus pondere!
[vencem-nos em sutileza, e nós os vencemos em peso!]".
Seria possível afirmar que esse conceito de “peso” das asserções e dos temas (como também dos problemas e das soluções) tem pouca cientificidade, sobretudo se contraposto a critério verdadeiro-falso que durante séculos foi o eixo de toda pesquisa científica. Todavia essa primeira aparência é hoje desmentida pelos fatos, em particular pela epistemologia destes últimos vinte anos. Um dos mais conhecidos epistemologistas americanos vivos, Larry Laudan, embasou seu tratado de 1977, Progress and its Problems, precisamente no conceito de uma “pesagem cognitivamente racional dos problemas científicos”.
Não se trata porém de um fenômeno exclusivo do nosso século, já que o próprio Descartes, no século XVII, mostrou, em suas pesquisas específicas de mecânica, guiar-se mais por uma avaliação do peso dos problemas do que pelo critério da verdade absoluta. Tal avaliação foi determinante para que sua física elevasse os problemas do choque e da colisão dos corpos, da posição totalmente marginal em que se encontravam na física precedente a uma posição central no estudo da mecânica. Isso se deveu sobretudo a uma “ponderação” das vantagens cognitivas que verossimilmente essa mudança de postura teria acarretado.
Esse comportamento é ainda mais significativo por provir daquele Descartes que partira do propósito metodológico de deixar de lado tudo o que não fosse certeza absoluta. Seus Princípios de Filosofia começam afirmando que “será útil considerar falsas inclusive as coisas que são apenas verossímeis”.
Mas já no Discurso do Método ele recuava para uma posição menos rigorosa, que admitia também o emprego do verossímil:
"Como freqüentemente as ações da vida não admitem temporizações, então, quando não nos é possível discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais verossímeis".
Quando se propôs descobrir novos princípios mecânicos, já não lhe bastaram nem o critério do verdadeiro absoluto nem o do verossímil: ele adotou, para os problemas do choque dos corpos, o critério pragmático da ponderação dos problemas.
A atitude inicial de Descartes lembra muito a do Sócrates platônico no Teeteto, para o qual todas as opiniões apenas verossímeis devem ser consideradas falsas, porque carecem daquele caráter de necessidade que é próprio apenas de ciência:
"A mera opinião não pode ser conhecimento, pois pode haver também opiniões falsas".
Tanto o rigorismo metódico inicial de Descartes como o rigorismo anti-retórico do Teeteto platônico são comparáveis à ingenuidade de quem acredita que o progresso científico possa ser produzido pelos computadores, os únicos que nunca erram. Mas, ao menos no estado atual, a simples memorização do verdadeiro e do falso não está em condições de produzir a inventividade da descoberta.
Na Antiguidade, quem impôs essa exigência foi justamente um discípulo de Górgias, Isócrates, personagem ainda mais emblemático por ser o único retórico a quem Sócrates reconhece, no final do Fedro, um talento filosófico. Quatro anos antes do aparecimento do Górgias platônico, em 391 a.C., Contra os Sofistas, manifesto programático da sua escola retórica, Isócrates escrevia:
"Enquanto para compor corretamente as letras do alfabeto não são necessárias outras capacidades [além de não cometer erros], para criar um discurso interessante é preciso ser pertinente ao argumento e original".
A pertinência (em grego kairós) também poderá vir a ser programada por um cérebro eletrônico, mas programar a originalidade é uma contradição em termos.
Foi nessa oposição que Karl Popper baseou, em 1934, sua teoria da descoberta científica. Num momento em que o neopositivismo vienense queria impor a toda a ciência o embasamento na análise lógica, que se limita a distinguir o verdadeiro do falso, ele advertia que o ato de conceber e inventar uma teoria não é suscetível de nenhuma análise lógica.
Por outro lado, porém, segundo Isócrates, apenas a originalidade não basta se não for conjugada a pertinência às circunstâncias; por isso, o verossímil (eikós) é síntese de invenção (héuresis) e de oportunidade (kairós). Isto é, se inventarmos conceitos não pertinentes a uma realidade efetiva teremos uma mera fantasia desprovida de realidade, do mesmo modo que se nos limitarmos a registrar o que é seguramente verdadeiro na realidade não teremos sequer aquele lampejo de inteligência que nos faz compreender – e não só registrar – a realidade. Parece ter sido este o pensamento de Górgias no fragmento que nos é citado por Proclo:
"a realidade fica obscura se não se torna aparência, mas a aparência é inconsistente se não for pertinente à realidade".
Todavia a realidade que consegue ser ao mesmo tempo aparência não é o verdadeiro, e sim o verossímil.
Aristóteles, que revalorizou a retórica, embora não negando a superioridade da filosofia, pretende pôr fim ao antagonismo entre o verdadeiro e o verossímil sustentando que o verdadeiro é o “universal absoluto”, enquanto o verossímil é o “universal com relação a” alguma coisa:
"O eikós é aquilo que acontece normalmente, mas não em absoluto [haplós], como consideram alguns; é aquilo que, nas coisas que poderiam ser de outro modo, está para o que [prós hó] se refere como o universal para o particular".
Contudo essa relatividade do universal retórico é precisamente o fator que lhe permite representar um papel agonístico, proibido ao verdadeiro. A hipótese cosmológica dos “buracos negros”, fagocitosa matéria, é certamente uma idéia universal, mas só com relação à teoria da antimatéria; já para quem optar pela teoria da realidade como tríade próton-elétron-nêutron, a teoria dos buracos negros perde o valor. Poder-se-ia dizer, portanto, que a teoria dos buracos negros é um universal agonístico, um eikós, e estudar as modalidades e as possibilidades do seu agonismo pode ser objeto de uma nova retórica.
Em breve, o próximo artigo desta série: ESTILO RETÓRICO E ESTILO FILOSÓFICO. Aguardem!
0 Comments:
Postar um comentário
<< Home