Poética - A musa Domesticada
A Musa Domesticada
Podemos definir provisoriamente a Poética como designativa, ao mesmo tempo, da arte e da ciência da poesia. É também um domínio simultaneamente público e secreto, onde é conveniente avançarmos com cuidado. Não seria melhor deixar a Poética aberta a todos os ventos do espírito, ver nela, simples e generosamente, a soma nunca total de todos os discursos passados, presentes e futuros, que tenham por objeto a poesia, entidade indefinível e libertária, em perpétuo vir-a-ser? A Poética se transformaria no Grande Livro de Ouro da poesia, já cheia de uma grande quantidade poliglota de tratados, aforismos, intuições fulgurantes ou ridículas, de fioretti às braçadas, de códigos pedantes ou místicos, de manifestos calorosos ou provocantes, fraternais ou incompreensíveis, rica ainda de uma infinidade de páginas virgens e onde os poetas e seus comentaristas não cessarão jamais de teorizar.
Mas o estado de liberdade, de disponibilidade quase vertiginosa em que se encontra a poesia, não nos deve fazer esquecer que ela era regida, outrora, por leis e legisladores, métodos e programas. Ainda hoje, a poesia não se contenta apenas em existir. É preciso que viva segundo a sua natureza, sua essência; ela não se identifica com qualquer coisa. Não se pode nunca postular que a Poética cobre apenas as glosas suscitadas pela atividade dos poetas. Na realidade, ela tem sua história, suas funções próprias, adquiriu uma certa autonomia conceitual e pragmática, e não existe apenas como um acessório à margem da poesia, como um guia, um modo de usar, uma Intendência. O próprio vocábulo merece que nos detenhamos nele um instante, ainda mais porque o amador de poesia deve interessar-se pelas palavras em si, pela sua genealogia e ressonância, sua essência e seu contorno. Sabemos que poesia e Poética derivam, história e semanticamente, do grego poiêsis, “criação”. Certos especialistas, ou escritores, tiveram, recentemente, o cuidado de reviver essa raiz, substituindo a palavra antiga Poética por Poiética, ainda mais velha, mas não me parece que esse purismo filológico seja necessário, pois a origem do grupo de palavras que giram em torno de poesia é conhecida do público. Segue-se que etimologicamente poeta significa criador. Função intimidante, talvez mais ainda para aquele ou aquela que a assume do que para o público. Há, porém, poetas, ou grandes sacerdotes da poesia, que falam em seu nome, que não hesitam em reivindicar o título de Criador ou Demiurgo. E de ter recebido do demiurgo alguma delegação sobrenatural, pois a tecnicidade meticulosa que reinava outrora nesse domínio é acompanhada de uma tradição irracional, que atribui a criação poética a uma intervenção extraterrestre, a da musa, ou da afflatus divino – em outras palavras, a inspiração, literalmente um sopro que vem habitar o corpo do poeta, um espírito ativo, princípio de vida e de pensamento (o parentesco entre espírito e inspiração é bastante claro) – que toma o lugar das faculdades mentais do poeta e fala através dele. Daí a equivalência, ente o poeta e o profeta. O duplo sentido da palavra gênio reflete-se ainda nessa visão: uma espécie de anjo da guarda capaz de fazer realizar prodígios, ou talento hipertrofiado, força interior de causas não identificadas, que provoca saltos na natureza e na cultura. Sob uma forma atenuada, encontramos a idéia de que o dom poético, inexplicável, inato, não se aprende: o orador faz-se, o poeta nasce, como dizia o provérbio latino, Fit orator, nascitur poeta.
A teoria da Musa e da inspiração passa, com freqüência, por uma mistificação arcaica, lamentavelmente perpetuada pelos defensores de um humanismo antiquado, confuso, sentimental, pré-científico, que torna impossível a análise lúcida e metódica dos textos. Esse julgamento parece sensato, mas não devemos esquecer um ponto importante: se há, de um lado, os partidários da inspiração e, do outro especialistas para os quais o trabalho criador se faz pela concentração intelectual e pela competência técnica, esta oposição não representa realmente duas tendências da crítica literária, a antiga e a moderna, mas antes um desacordo entre os próprios poetas e alguns dos seus comentaristas. Foram os poetas, e não os historiadores da literatura, que inventaram a Musa e, com isso, provocaram reações de incredulidade. Homero, ao começar a contar a guerra de Tróia, e Milton, a criação do mundo, invocam suas musas e pedem não só que lhes insuflem o ritmo poético, como até mesmo que lhes comuniquem a documentação necessária.
“A poesia não é, como o raciocínio, uma faculdade que se possa exercer pelo exercício da vontade. Ninguém pode dizer “vou compor poesia”. Mesmo o maior poeta não pode dizê-lo, pois o espírito criador é semelhante a uma brasa dormida que uma força invisível, como um vento inconstante. Anima de um brilho efêmero: esse poder emana do interior (....) e as zonas conscientes de nossa natureza não podem anunciar sua chegada, nem sua partida.
(...) Os poetas são os hierofantes de uma inspiração que não se pode explicar; são os espelhos onde se refletem as sobras gigantescas que o futuro projeta sobre o presente; são as palavras que exprimem aquilo que eles não compreendem; são as trombetas que chamam ao combate e não sentem o que inspiram; são a influência que não é passível de ação, mas que age...”.
Assim se expressava Shelley, em 1821, em sua Defesa da poesia.
Foi na posteridade do romantismo que teve lugar a descoberta, ou a redescoberta, do inconsciente, da conivência entre a imaginação e o desejo, entre o sonho e a criação poética, o fantasma e o símbolo. Continua-se então a buscar alguma coisa que, qualquer que seja seu nome, parece-se sempre com a inspiração. Por não encontrar as claridades obscuras do espírito no céu estrelado, consulta-se a noite do corpo, explora-se o sono, natural ou artificial; e às vezes o recurso ao álcool, às drogas alucinógenas, à embriaguez dos sentidos, à loucura, é considerado necessário à ascese poética, com o pressentimento de que aquilo que enevoa a razão constitui a substância das “arquiteturas das nuvens” de que fala Baudelaire.
“A poesia surge, em mim, de um sonho sempre latente. Esse sonho, gosto de dirigi-lo, exceto nos dias de inspiração quando tenho a impressão de que ele se dirige sozinho.
Não gosto do sonho que vai à deriva. Procuro fazer dele um sonho consistente, uma espécie de figura de proa que depois de ter atravessado os espaços e o tempo interiores, afronta os espaços e o tempo do exterior – e para ele, o exterior é a página em branco. Sonhar é esquecer a materialidade de seu corpo, confundir de algum modo o mundo exterior e o interior. A onipresença do poeta cósmico talvez não tenha outra origem... (Jules Spervielle, Em songeant à um art poétique, Gallimard, 1951)”.
Tudo isso provoca por vezes protestos, como o de René Etiemble, que vê nessa assimilação do poietes a um deus todo-poderoso, objeto de veneração e fonte de conhecimentos revelados, um erro léxico e uma grandiloqüência exagerada, ao mesmo tempo. Apoiando-se notadamente em Diderot, Gautier, Valéry e Paulhan, esse grande derrubador de mitos que quer ser Etiemble deseja reduzir, no espírito do público, o fabricante de poemas à função mais humilde mas não humilhante, de modesto artesão e tarefeiro das letras. É no prefácio de uma coletânea de artigos intitulada Poetas ou fazedores? – expressão tomada de empréstimo a Diderot, com o ponto de interrogação acrescentado pelo autor – que critica o que chama de “vaticinantes da Poética”, voltando contra eles a etimologia que reivindicavam:
“... é bem esse, em grego, o sentido do poiesis: uma operação de ordem instrumental, como oportunamente o lembra com vigor Jean-Pierre Vernant em seus trabalhos sobre o pensamento grego. Em Aristóteles, organa poietiká designa as ferramentas e os artesãos. Heródoto, Platão, Tucídides empregam poietiká ao falar de obras manuais, para designar a fabricação de um navio, ou a confecção de um perfume (Paris, Gallimard, 1966, p. 14)”.
A controvérsia provocada pelo autor citado acima, no preâmbulo de uma série de livros (agrupados sob o título geral e um tanto polêmico de “Higiene das Letras”) contra os literatos e universitários exaltados que fazem do escrever um ato místico-genético e do poeta um deus, não compromete, bem entendido, senão a ele, e não pretendemos resolvê-la aqui, mas vale a pena observar que a terminologia de origem grega habitualmente usada é cheia de ambigüidades, e podemos compreender já porque a história das doutrinas poéticas oscila entre dois pólos, entre dois papéis, que os poetas assumem.
No plano léxico, a Poética, como vocábulo, suscita uma questão de morfologia: contrariamente ao que acontece em grego e ao que deixa entender a semelhança formal entre o adjetivo poiêtikê e a mesma palavra utilizada como substantivo, ocorre que em francês esse termo não é sentido como oriundo da substantivação, no feminino, de um qualificativo. Se falarmos da “poética” dentro do mesmo modelo de “a melancólica”, “a romanesca”, “a pensativa”, estaremos nos referindo a uma mulher, real ou figurada, como nos títulos de certas peças musicais do século XVIII, e não a um domínio intelectual. É, portanto, para evitar qualquer confusão que a palavra que serve de título e de tema a esta obra é sempre usada como uma inicial maiúscula, exceto eventualmente, e por necessidade, nas citações. E já que se trata de evitar confusões, notadamente de adjetivos substantivados, será útil distinguir entre a Poética e o poético, indicando que há forçosamente zonas comuns aos campos semânticos que cobrem essas duas noções, e laços orgânicos, ainda mais porque no masculino o adjetivo utilizado como substantivo designa uma dualidade geral, elevada à altura de um conceito, o que acentua a semelhança. A poética trata, pelo menos em parte, do poético, isto é, explora um veio, ou produz um corpus, que a consciência intelectual ou mesmo a percepção imediata caracterizam como relacionados com o poético. Mas como esse encadeamento de definições parece constituir um círculo, eis um exemplo, simplista e superficial, mas capaz de dar a essas idéias uma configuração observável e a lembrar que a Poética é, antes de tudo, uma questão de realização. Imaginemos um poeta, fiel à imagem que o representa familiarmente, rico de eloqüência e sensibilidade. Ele procura expressar por escrito o deslumbramento e que lhe provoca o espetáculo do pôr-do-sol, cujo esplendor mais do que decorativo lhe vale, da parte do consenso popular, o epíteto de poético; esse adjetivo denota uma beleza capaz de tocar a afetividade do espectador humano, como se o mundo físico fosse dotado de talento e de imaginação, da faculdade de emocionar, ou fosse revelador de um Espírito arquiteto, presente e oculto na disposição material das coisas. Admitiremos que a qualidade estética de uma paisagem, e é esse o sentido do exemplo escolhido, representa uma das manifestações possíveis daquilo que se chama de poético. O que, por sua vez, testemunha a intervenção da Poética é evidentemente a arte aplicada pelo autor do texto à composição de sua obra, à expressão de seu pensamento, à composição de sua obra, à expressão de seu pensamento, à sugestão de seus sentimentos, à evocação de uma visão, ao correlacionamento da paisagem descrita com uma rede de referências literárias ou outras, à criação de um sentido simbólico, ou, na perspectiva de uma doutrina que faz da arte o fim da própria arte, à criação da poesia chamada de pura, não necessariamente expressiva e descritiva. Mas a delimitação dos espaços conceituais continua sendo teórica. Esperamos de um poema que seja poético, isto é, que contenha e amplie a impressão primeira que o exterior estimulante pôde suscitar, e que sua fatura não seja dissociável do clima de que está impregnado. Mas para tentar compreender a articulação dinâmica que existe entre a Poética e o poético, é preciso ultrapassar a fase das distinções léxicas e formais, que só nos ensinam evidências fragmentárias. O importante é que, em sentido inverso do que foi descrito mais acima, a Poética criou o poético. A paisagem citada como exemplo pode não ter existido nunca. Qualquer que seja sua condição original, a partir do momento que constitui o tema de um texto poético, é nesse texto, por esse texto e segundo as leis do gênero, que a paisagem realiza toda a sua existência e se reveste de todas as suas características, pois é criada, ou recriada, por esse texto. No começo é o Verbo, e o verbo poético não é um revelador no sentido fotográfico. Um poema não tem de funcionar como um guia turístico, nem mesmo como uma página de diário íntimo. Se tais funções lhe são atribuídas, devem constituir no espírito do leitor apenas aspectos anexos, condições exteriores. Os Testaments de Villon, as epístolas de Marot, mesmo as profecias de Nostradamus, são, para o amador da poesia, poemas, antes de serem documentos. Não é para cultivar o paradoxo que invertemos assim a ordem cronológica da produção, mas sim para lembrar que a existência da obra de arte, como qualquer outra existência, irrompe no campo do real e abre ali um lugar com uma força viva que não pode mais possuir as circunstâncias mais ou menos distantes e inapreensíveis que a cercaram no momento de sua concepção. Assim também a realização de um quadro não é sinônimo do encontro entre um pintor e seu modelo. No campo aqui tratado, a etimologia confirma que a criação literária é anterior à noção de qualidade poética, e se podemos dizer que uma paisagem é poética, é legítimo acrescentar que é por analogia com uma invenção artística, e portanto humana e mental, que tal qualificativo lhe é atribuído. Em outras palavras, se uma paisagem é poética, é porque se assemelha a um poema.
Estas considerações não têm o objetivo de introduzir sub-repticiamente o dogma, por vezes estigmatizado como típico do estetismo dito decadente de fins do século XIX, segundo o qual as fabricações artificiais são superiores às criações da Natureza, nem o idealismo forçado segundo o qual não há outra realidade senão a mental, e que as coisas só existem no conhecimento que delas temos, nem um gestaltismo exacerbado que proclamaria ser toda percepção, ou toda obra de arte, apenas a projeção no mundo exterior, aplainado como uma tela, de esquemas inatos existentes no cérebro. Trata-se apenas de ressaltar que a poesia é uma atividade humana, e que a poesia encontrada nas coisas é, em primeiro lugar, percebida, sentida, mentalmente reconstruída pela consciência estética. Sabemos também que a Estética, a ciência da arte e da beleza, está relacionada com uma família de palavras gregas indicadoras da percepção sensórea. O diálogo que o poeta mantém com as coisas é estético nos dois sentidos da palavra: emotivo e ligado à realização artística. Se é um diálogo autêntico, há troca e enriquecimento mútuos. É o poeta laborioso, insincero, convencional, que projeta sobre a experiência uma Poética feita de lugares-comuns e artifícios.
É disso que fala Mikel Dufrenne, ao defender uma espécie de empirismo estético, num livro que se intitula precisamente La Poétique:
“Certamente, as coisas não nos dizem o que elas sentem, ou pensam, pois não pensam nem sentem nada. Elas nos dizem, porém, o que sentimos e o que pensamos, e da mesma maneira nos ajudam a dizê-lo: nos oferecem uma imagem de nós mesmos, com a qual aprendemos a nos conhecer...
Assim, a poesia diz o mundo. É esse seu verdadeiro tema. E surge imediatamente uma questão prejudicial: se a poesia é solidária com o assunto, haverá assuntos que servem à poesia, e outros que a excluem? Uma primeira resposta impõe-se: o assunto não é poético por si mesmo, ele se torna poético, e pode sempre tornar-se poético:
Não existe sempre nem monstro odioso
Que pela arte imitado não seja formoso
Essa cirurgia estética é operada pelo verbo. Mas o verbo é, em relação ao sentido, tanto determinado como determinante: ele só pode poetizar o que é poetizável, e, por mais imanente que o assunto seja ao verbo, na medida em que ele serve a esse verbo que o transfigura, temos o direito de considerá-lo no seu estado pré-poético, e de nos interrogarmos sobre o seu ser-poetizável.
Ora, nem todos os assuntos prestam-se igualmente à poetização: não foi por acaso que Ponge tomou partido da lavadeira e não da máquina de lavar elétrica (p. 130)”.
Essas questões serão reexaminadas mais adiante, mas o leitor não deve esperar verdades definitivas e incontestáveis. Tudo o que se diz sobre a questão está condenado a permanecer fragmentário e provisório. A solução menos perigosa consiste em lembrar que a Poética é uma atividade ligada à História, um setor artesanal e acadêmico de facetas tão numerosas e complexas que não é possível, nem desejável, defini-la numa introdução, para em seguida desdobrar dessa definição um inventário ilustrativo ou uma sucessão de conseqüências lógicas. É por isso que este material irá definir e focaliza, segundo um processo mais panorâmico do que progressivo, mais histórico do que filosófico, os diversos aspectos de um domínio que se renovou e enriqueceu de tal modo, desde a Antigüidade, que a sua terminologia, suas classificações, seu próprio objeto, puderam mudar de sentido segundo o tempo e o local. O caso da obra de Aristóteles nos proporciona um exemplo e um ponto de partida privilegiados.
O próximo artigo desta série é DE ARISTÓTELES AOS MANIFESTOS LITERÁRIOS
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