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sexta-feira, agosto 25, 2006
Poética
- Capítulo II - De Aristóteles aos Manifestos Literários (Em Breve)
- A Poética de Aristóteles , Arte e Ciência
- A Mimese
- Retórica e Poética; As Artes Poéticas e os Manifestos
Nossa Língua, Nossa Gente
- 01 - "Não sou eu quem me navega"
- 02 - O fim do "cujo", o dito
- 03 - O pacotaço e o "de que"
- 04 - "Cozida a vapor"
- 05 - Tudo Normal
- 06 - Teje preso!
- 07 - Grátis ou gratuito?
Retórica - Uma Introdução
PRIMEIRA PARTE
- Capítulo I - Retórica, Dialética e Filosofia: uma antiga rivalidade
- 01 - A Contenda Original
- 02 - O Repúdio da Retórica e as Dificuldades da Filosofia
- 03 - O Desafio do Verossímil ao Verdadeiro
- 04 - Estilo Retórico e Estilo Filosófico
- Capítulo II - A Arte de Inventar
- 05 - A Técnica do Antimodelo
- 06 - A Iteração dos Conceitos (Em breve)
- 07 - Paradoxos e Estranhamentos
- 08 - O emprego retórico dadefinição
quarta-feira, julho 26, 2006
Walter Benjamin e o Arco-íris
Antes de seus estudos sobre Baudelaire e sobre o Drama Barroco Alemão, o crítico e filósofo Walter Benjamin dedicou-se a algumas especulações sobre a essência das cores --tema clássico no pensamento romântico alemão, desde Goethe. Cito um trecho muito bonito de "A visão das cores de uma criança", texto escrito entre 1914 e 1915:
A cor é algo espiritual, algo cuja claridade é espiritual, pois quando as cores se misturam, elas produzem novas cores, não um borrão. O arco-íris tem a pureza da infância.
O que interessava Benjamin era a idéia de que, de uma realidade sensível, empírica, material, como a cor, pudesse deduzir-se algo de espritual e infinito. O peso, a espessura, a grosseria da matéria tenderiam a fazer com que tentativas de superposição de muitas cores resultassem numa massa obscura e feia. É o que nos acontece quando, na infância, aprendemos que azul com amarelo dá verde; logo tentamos fazer isso com a tinta guache, e dá razoavelmente certo. Só que, depois de mais umas experiências e misturas, o resultado acaba sendo a famosa cor-de-burro quando foge. No computador, assim como na natureza, a mistura entretanto dá certo, novas cores sempre se criam, porque qualquer que seja a dosagem entre as três cores básicas, está sempre garantindo o resultado uma quantidade fixa de transparência e luz.
Segundo Martin Jay ("Is Experience Still in Crisis? Reflections on a Frankfurt School Lament", in The Cambridge Companion to Adorno), que cita os estudos de Howard Caygill (Walter Benjamin: The Colour of Experience) Oo que move a obra de Walter Benjamin é a esperança de ver em qualquer dado da realidade concreta, material, a presença do infinito.
Ainda sobre crianças e cores, Arthur Nestrovski publicou, pela Cosacnaify, com ilustrações de Marcelo Cipis, um pequeno e imensamente poético livro infantil sobre a experiência de ver cores: mesmo as que não existem. Há em Cores das cores ilustrações sobre "a cor da cozinha de manhã", "a cor da noite na varanda", e sobre os diferentes verdes do jardim: ao sol, na chuva, na sombra. Uma página não tem cor nenhuma: fala-se da cor que o irmão mais velho diz ter como preferida, e que na verdade o irmão caçula sabe que não é a preferida dele... Não deixa de ser, a seu modo, uma experiência do infinito: cada cor se desmaterializa quando confrontada com o tempo, com a imaginação, com o que -sabemos-- não existe. Do mesmo modo, um arco-íris se dissolve antes que consigamos encontrar o tesouro que se esconde em seu fim.
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terça-feira, julho 25, 2006
Atenção ao Sábado
Clarice Lispector
No sábado é que as formigas subiam pela pedra.
Foi num sábado que vi um homem sentado na sombra da calçada comendo de uma cuia de carne-seca e pirão; nós já tínhamos tomado banho.
De tarde a campainha inaugurava ao vento a matinê de cinema: ao vento sábado era a rosa de nossa semana.
Se chovia só eu sabia que era sábado; uma rosa molhada, não é?
No Rio de Janeiro, quando se pensa que a semana vai morrer, com grande esforço metálico a semana se abre em rosa: o carro freia de súbito e, antes do vento espantado poder recomeçar, vejo que é sábado de tarde.
Tem sido sábado, mas já não me perguntam mais.
Mas já peguei as minhas coisas e fui para domingo de manhã.
Domingo de manhã também é a rosa da semana.
Não é propriamente rosa que eu quero dizer.
Texto extraído do livro "Para não Esquecer", Editora Siciliano - São Paulo, 1992.
quinta-feira, julho 20, 2006
"Não sou eu quem me navega"
“Não sou em quem me navega”
O último disco de Paulinho da Viola (Bebadosamba) e simplesmente primoroso. É um verdadeiro monumento da cultura popular desse país. Uma das canções é “Timoneiro”, música de Paulinho e letra de Hermínio Bello de Carvalho. “Não sou em quem me navega, quem me navega é o mar”, diz o refrão. Aí está o xis do problema: a concordância verbal quando se usa esse tipo de expressão.
Na língua do dia-a-dia, é muito comum que o verbo ser apareça na terceira pessoa do singular em frases como “Não foi eu que fiz”, ou simplesmente “Não foi nós”. Essa concordância – gramaticalmente errada – talvez se explique pelo uso generalizado da terceira pessoa (“Cabe dez”; “Falta quinze”; “Acabou as fichas”; “Sobrou vinte”; “Chegou os manuais”), o que é comum em todas as classes sociais.
Deve-se considerar que há dois verbos nesse tipo de frase: o verbo ser, que necessariamente concorda com o pronome a que se refere (Não fui eu; Não foi ele; Não fomos nós; Não foram eles), e o verbo que se prende ao pronome quem, preferencialmente conjugado na terceira do singular.
Ninguém acha estranha a concordância em perguntas diretas, como “Quem foi?”, “Quem fez isso?” ou “Quem paga?”, em que o verbo fica na terceira do singular. Assim, para a norma culta, a frase de Hermínio Bello de Carvalho é perfeita. O verbo ser concorda com o pronome eu (“Não sou eu”); o verbo navegar, que se prende ao pronome quem, fica na terceira pessoa do singular (“quem me navega”).
“Quem paga sou eu”, diz muita gente de mão aberta. Mas, se a ordem for invertida (“Sou eu quem paga”), já pinta careta. Dá no mesmo. As duas são equivalentes. Se você diz “Quem paga somos nós”, nenhum problema em “Somos nós quem paga”.
E como fica a concordância quando se usa “Sou eu que”, “Não fomos nós que” ou “Foram eles que”? É outra história. O verbo que vem depois do “que” necessariamente será conjugado na mesma pessoa em que se encontra o verbo ser. Então deve-se dizer “Não fui eu que fiz”, “Não fomos nós que dissemos”, “Não foram eles que denunciaram”.
Os mais velhos devem lembrar-se de uma canção da década de 70, “Última forma”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, cuja letra diz: “E graças a Deus não vai ser eu quem vai mudar”. Não vai ser eu? Eu não vai ser? É óbvio que não.
O ótimo poeta Paulo César Pinheiro misturou as bolas e se deixou levar pelo velho problema da inversão. No padrão coloquial, quando do verbo vem na frente, lasca-se a terceira do singular.
A correção é muito simples: “Não vou ser eu quem vai mudar”. Essa música foi gravada pelo MPB-4 e pela cantora Márcia, que não perceberam o problema e mantiveram a concordância errada.
Vale repetir: usando “quem”, prefere-se o verbo seguinte na terceira do singular; usando “que”, o verbo segue a concordância do verbo ser. É isso.
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terça-feira, julho 18, 2006
Poética - A musa Domesticada
A Musa Domesticada
Podemos definir provisoriamente a Poética como designativa, ao mesmo tempo, da arte e da ciência da poesia. É também um domínio simultaneamente público e secreto, onde é conveniente avançarmos com cuidado. Não seria melhor deixar a Poética aberta a todos os ventos do espírito, ver nela, simples e generosamente, a soma nunca total de todos os discursos passados, presentes e futuros, que tenham por objeto a poesia, entidade indefinível e libertária, em perpétuo vir-a-ser? A Poética se transformaria no Grande Livro de Ouro da poesia, já cheia de uma grande quantidade poliglota de tratados, aforismos, intuições fulgurantes ou ridículas, de fioretti às braçadas, de códigos pedantes ou místicos, de manifestos calorosos ou provocantes, fraternais ou incompreensíveis, rica ainda de uma infinidade de páginas virgens e onde os poetas e seus comentaristas não cessarão jamais de teorizar.
Mas o estado de liberdade, de disponibilidade quase vertiginosa em que se encontra a poesia, não nos deve fazer esquecer que ela era regida, outrora, por leis e legisladores, métodos e programas. Ainda hoje, a poesia não se contenta apenas em existir. É preciso que viva segundo a sua natureza, sua essência; ela não se identifica com qualquer coisa. Não se pode nunca postular que a Poética cobre apenas as glosas suscitadas pela atividade dos poetas. Na realidade, ela tem sua história, suas funções próprias, adquiriu uma certa autonomia conceitual e pragmática, e não existe apenas como um acessório à margem da poesia, como um guia, um modo de usar, uma Intendência. O próprio vocábulo merece que nos detenhamos nele um instante, ainda mais porque o amador de poesia deve interessar-se pelas palavras em si, pela sua genealogia e ressonância, sua essência e seu contorno. Sabemos que poesia e Poética derivam, história e semanticamente, do grego poiêsis, “criação”. Certos especialistas, ou escritores, tiveram, recentemente, o cuidado de reviver essa raiz, substituindo a palavra antiga Poética por Poiética, ainda mais velha, mas não me parece que esse purismo filológico seja necessário, pois a origem do grupo de palavras que giram em torno de poesia é conhecida do público. Segue-se que etimologicamente poeta significa criador. Função intimidante, talvez mais ainda para aquele ou aquela que a assume do que para o público. Há, porém, poetas, ou grandes sacerdotes da poesia, que falam em seu nome, que não hesitam em reivindicar o título de Criador ou Demiurgo. E de ter recebido do demiurgo alguma delegação sobrenatural, pois a tecnicidade meticulosa que reinava outrora nesse domínio é acompanhada de uma tradição irracional, que atribui a criação poética a uma intervenção extraterrestre, a da musa, ou da afflatus divino – em outras palavras, a inspiração, literalmente um sopro que vem habitar o corpo do poeta, um espírito ativo, princípio de vida e de pensamento (o parentesco entre espírito e inspiração é bastante claro) – que toma o lugar das faculdades mentais do poeta e fala através dele. Daí a equivalência, ente o poeta e o profeta. O duplo sentido da palavra gênio reflete-se ainda nessa visão: uma espécie de anjo da guarda capaz de fazer realizar prodígios, ou talento hipertrofiado, força interior de causas não identificadas, que provoca saltos na natureza e na cultura. Sob uma forma atenuada, encontramos a idéia de que o dom poético, inexplicável, inato, não se aprende: o orador faz-se, o poeta nasce, como dizia o provérbio latino, Fit orator, nascitur poeta.
A teoria da Musa e da inspiração passa, com freqüência, por uma mistificação arcaica, lamentavelmente perpetuada pelos defensores de um humanismo antiquado, confuso, sentimental, pré-científico, que torna impossível a análise lúcida e metódica dos textos. Esse julgamento parece sensato, mas não devemos esquecer um ponto importante: se há, de um lado, os partidários da inspiração e, do outro especialistas para os quais o trabalho criador se faz pela concentração intelectual e pela competência técnica, esta oposição não representa realmente duas tendências da crítica literária, a antiga e a moderna, mas antes um desacordo entre os próprios poetas e alguns dos seus comentaristas. Foram os poetas, e não os historiadores da literatura, que inventaram a Musa e, com isso, provocaram reações de incredulidade. Homero, ao começar a contar a guerra de Tróia, e Milton, a criação do mundo, invocam suas musas e pedem não só que lhes insuflem o ritmo poético, como até mesmo que lhes comuniquem a documentação necessária.
“A poesia não é, como o raciocínio, uma faculdade que se possa exercer pelo exercício da vontade. Ninguém pode dizer “vou compor poesia”. Mesmo o maior poeta não pode dizê-lo, pois o espírito criador é semelhante a uma brasa dormida que uma força invisível, como um vento inconstante. Anima de um brilho efêmero: esse poder emana do interior (....) e as zonas conscientes de nossa natureza não podem anunciar sua chegada, nem sua partida.
(...) Os poetas são os hierofantes de uma inspiração que não se pode explicar; são os espelhos onde se refletem as sobras gigantescas que o futuro projeta sobre o presente; são as palavras que exprimem aquilo que eles não compreendem; são as trombetas que chamam ao combate e não sentem o que inspiram; são a influência que não é passível de ação, mas que age...”.
Assim se expressava Shelley, em 1821, em sua Defesa da poesia.
Foi na posteridade do romantismo que teve lugar a descoberta, ou a redescoberta, do inconsciente, da conivência entre a imaginação e o desejo, entre o sonho e a criação poética, o fantasma e o símbolo. Continua-se então a buscar alguma coisa que, qualquer que seja seu nome, parece-se sempre com a inspiração. Por não encontrar as claridades obscuras do espírito no céu estrelado, consulta-se a noite do corpo, explora-se o sono, natural ou artificial; e às vezes o recurso ao álcool, às drogas alucinógenas, à embriaguez dos sentidos, à loucura, é considerado necessário à ascese poética, com o pressentimento de que aquilo que enevoa a razão constitui a substância das “arquiteturas das nuvens” de que fala Baudelaire.
“A poesia surge, em mim, de um sonho sempre latente. Esse sonho, gosto de dirigi-lo, exceto nos dias de inspiração quando tenho a impressão de que ele se dirige sozinho.
Não gosto do sonho que vai à deriva. Procuro fazer dele um sonho consistente, uma espécie de figura de proa que depois de ter atravessado os espaços e o tempo interiores, afronta os espaços e o tempo do exterior – e para ele, o exterior é a página em branco. Sonhar é esquecer a materialidade de seu corpo, confundir de algum modo o mundo exterior e o interior. A onipresença do poeta cósmico talvez não tenha outra origem... (Jules Spervielle, Em songeant à um art poétique, Gallimard, 1951)”.
Tudo isso provoca por vezes protestos, como o de René Etiemble, que vê nessa assimilação do poietes a um deus todo-poderoso, objeto de veneração e fonte de conhecimentos revelados, um erro léxico e uma grandiloqüência exagerada, ao mesmo tempo. Apoiando-se notadamente em Diderot, Gautier, Valéry e Paulhan, esse grande derrubador de mitos que quer ser Etiemble deseja reduzir, no espírito do público, o fabricante de poemas à função mais humilde mas não humilhante, de modesto artesão e tarefeiro das letras. É no prefácio de uma coletânea de artigos intitulada Poetas ou fazedores? – expressão tomada de empréstimo a Diderot, com o ponto de interrogação acrescentado pelo autor – que critica o que chama de “vaticinantes da Poética”, voltando contra eles a etimologia que reivindicavam:
“... é bem esse, em grego, o sentido do poiesis: uma operação de ordem instrumental, como oportunamente o lembra com vigor Jean-Pierre Vernant em seus trabalhos sobre o pensamento grego. Em Aristóteles, organa poietiká designa as ferramentas e os artesãos. Heródoto, Platão, Tucídides empregam poietiká ao falar de obras manuais, para designar a fabricação de um navio, ou a confecção de um perfume (Paris, Gallimard, 1966, p. 14)”.
A controvérsia provocada pelo autor citado acima, no preâmbulo de uma série de livros (agrupados sob o título geral e um tanto polêmico de “Higiene das Letras”) contra os literatos e universitários exaltados que fazem do escrever um ato místico-genético e do poeta um deus, não compromete, bem entendido, senão a ele, e não pretendemos resolvê-la aqui, mas vale a pena observar que a terminologia de origem grega habitualmente usada é cheia de ambigüidades, e podemos compreender já porque a história das doutrinas poéticas oscila entre dois pólos, entre dois papéis, que os poetas assumem.
No plano léxico, a Poética, como vocábulo, suscita uma questão de morfologia: contrariamente ao que acontece em grego e ao que deixa entender a semelhança formal entre o adjetivo poiêtikê e a mesma palavra utilizada como substantivo, ocorre que em francês esse termo não é sentido como oriundo da substantivação, no feminino, de um qualificativo. Se falarmos da “poética” dentro do mesmo modelo de “a melancólica”, “a romanesca”, “a pensativa”, estaremos nos referindo a uma mulher, real ou figurada, como nos títulos de certas peças musicais do século XVIII, e não a um domínio intelectual. É, portanto, para evitar qualquer confusão que a palavra que serve de título e de tema a esta obra é sempre usada como uma inicial maiúscula, exceto eventualmente, e por necessidade, nas citações. E já que se trata de evitar confusões, notadamente de adjetivos substantivados, será útil distinguir entre a Poética e o poético, indicando que há forçosamente zonas comuns aos campos semânticos que cobrem essas duas noções, e laços orgânicos, ainda mais porque no masculino o adjetivo utilizado como substantivo designa uma dualidade geral, elevada à altura de um conceito, o que acentua a semelhança. A poética trata, pelo menos em parte, do poético, isto é, explora um veio, ou produz um corpus, que a consciência intelectual ou mesmo a percepção imediata caracterizam como relacionados com o poético. Mas como esse encadeamento de definições parece constituir um círculo, eis um exemplo, simplista e superficial, mas capaz de dar a essas idéias uma configuração observável e a lembrar que a Poética é, antes de tudo, uma questão de realização. Imaginemos um poeta, fiel à imagem que o representa familiarmente, rico de eloqüência e sensibilidade. Ele procura expressar por escrito o deslumbramento e que lhe provoca o espetáculo do pôr-do-sol, cujo esplendor mais do que decorativo lhe vale, da parte do consenso popular, o epíteto de poético; esse adjetivo denota uma beleza capaz de tocar a afetividade do espectador humano, como se o mundo físico fosse dotado de talento e de imaginação, da faculdade de emocionar, ou fosse revelador de um Espírito arquiteto, presente e oculto na disposição material das coisas. Admitiremos que a qualidade estética de uma paisagem, e é esse o sentido do exemplo escolhido, representa uma das manifestações possíveis daquilo que se chama de poético. O que, por sua vez, testemunha a intervenção da Poética é evidentemente a arte aplicada pelo autor do texto à composição de sua obra, à expressão de seu pensamento, à composição de sua obra, à expressão de seu pensamento, à sugestão de seus sentimentos, à evocação de uma visão, ao correlacionamento da paisagem descrita com uma rede de referências literárias ou outras, à criação de um sentido simbólico, ou, na perspectiva de uma doutrina que faz da arte o fim da própria arte, à criação da poesia chamada de pura, não necessariamente expressiva e descritiva. Mas a delimitação dos espaços conceituais continua sendo teórica. Esperamos de um poema que seja poético, isto é, que contenha e amplie a impressão primeira que o exterior estimulante pôde suscitar, e que sua fatura não seja dissociável do clima de que está impregnado. Mas para tentar compreender a articulação dinâmica que existe entre a Poética e o poético, é preciso ultrapassar a fase das distinções léxicas e formais, que só nos ensinam evidências fragmentárias. O importante é que, em sentido inverso do que foi descrito mais acima, a Poética criou o poético. A paisagem citada como exemplo pode não ter existido nunca. Qualquer que seja sua condição original, a partir do momento que constitui o tema de um texto poético, é nesse texto, por esse texto e segundo as leis do gênero, que a paisagem realiza toda a sua existência e se reveste de todas as suas características, pois é criada, ou recriada, por esse texto. No começo é o Verbo, e o verbo poético não é um revelador no sentido fotográfico. Um poema não tem de funcionar como um guia turístico, nem mesmo como uma página de diário íntimo. Se tais funções lhe são atribuídas, devem constituir no espírito do leitor apenas aspectos anexos, condições exteriores. Os Testaments de Villon, as epístolas de Marot, mesmo as profecias de Nostradamus, são, para o amador da poesia, poemas, antes de serem documentos. Não é para cultivar o paradoxo que invertemos assim a ordem cronológica da produção, mas sim para lembrar que a existência da obra de arte, como qualquer outra existência, irrompe no campo do real e abre ali um lugar com uma força viva que não pode mais possuir as circunstâncias mais ou menos distantes e inapreensíveis que a cercaram no momento de sua concepção. Assim também a realização de um quadro não é sinônimo do encontro entre um pintor e seu modelo. No campo aqui tratado, a etimologia confirma que a criação literária é anterior à noção de qualidade poética, e se podemos dizer que uma paisagem é poética, é legítimo acrescentar que é por analogia com uma invenção artística, e portanto humana e mental, que tal qualificativo lhe é atribuído. Em outras palavras, se uma paisagem é poética, é porque se assemelha a um poema.
Estas considerações não têm o objetivo de introduzir sub-repticiamente o dogma, por vezes estigmatizado como típico do estetismo dito decadente de fins do século XIX, segundo o qual as fabricações artificiais são superiores às criações da Natureza, nem o idealismo forçado segundo o qual não há outra realidade senão a mental, e que as coisas só existem no conhecimento que delas temos, nem um gestaltismo exacerbado que proclamaria ser toda percepção, ou toda obra de arte, apenas a projeção no mundo exterior, aplainado como uma tela, de esquemas inatos existentes no cérebro. Trata-se apenas de ressaltar que a poesia é uma atividade humana, e que a poesia encontrada nas coisas é, em primeiro lugar, percebida, sentida, mentalmente reconstruída pela consciência estética. Sabemos também que a Estética, a ciência da arte e da beleza, está relacionada com uma família de palavras gregas indicadoras da percepção sensórea. O diálogo que o poeta mantém com as coisas é estético nos dois sentidos da palavra: emotivo e ligado à realização artística. Se é um diálogo autêntico, há troca e enriquecimento mútuos. É o poeta laborioso, insincero, convencional, que projeta sobre a experiência uma Poética feita de lugares-comuns e artifícios.
É disso que fala Mikel Dufrenne, ao defender uma espécie de empirismo estético, num livro que se intitula precisamente La Poétique:
“Certamente, as coisas não nos dizem o que elas sentem, ou pensam, pois não pensam nem sentem nada. Elas nos dizem, porém, o que sentimos e o que pensamos, e da mesma maneira nos ajudam a dizê-lo: nos oferecem uma imagem de nós mesmos, com a qual aprendemos a nos conhecer...
Assim, a poesia diz o mundo. É esse seu verdadeiro tema. E surge imediatamente uma questão prejudicial: se a poesia é solidária com o assunto, haverá assuntos que servem à poesia, e outros que a excluem? Uma primeira resposta impõe-se: o assunto não é poético por si mesmo, ele se torna poético, e pode sempre tornar-se poético:
Não existe sempre nem monstro odioso
Que pela arte imitado não seja formoso
Essa cirurgia estética é operada pelo verbo. Mas o verbo é, em relação ao sentido, tanto determinado como determinante: ele só pode poetizar o que é poetizável, e, por mais imanente que o assunto seja ao verbo, na medida em que ele serve a esse verbo que o transfigura, temos o direito de considerá-lo no seu estado pré-poético, e de nos interrogarmos sobre o seu ser-poetizável.
Ora, nem todos os assuntos prestam-se igualmente à poetização: não foi por acaso que Ponge tomou partido da lavadeira e não da máquina de lavar elétrica (p. 130)”.
Essas questões serão reexaminadas mais adiante, mas o leitor não deve esperar verdades definitivas e incontestáveis. Tudo o que se diz sobre a questão está condenado a permanecer fragmentário e provisório. A solução menos perigosa consiste em lembrar que a Poética é uma atividade ligada à História, um setor artesanal e acadêmico de facetas tão numerosas e complexas que não é possível, nem desejável, defini-la numa introdução, para em seguida desdobrar dessa definição um inventário ilustrativo ou uma sucessão de conseqüências lógicas. É por isso que este material irá definir e focaliza, segundo um processo mais panorâmico do que progressivo, mais histórico do que filosófico, os diversos aspectos de um domínio que se renovou e enriqueceu de tal modo, desde a Antigüidade, que a sua terminologia, suas classificações, seu próprio objeto, puderam mudar de sentido segundo o tempo e o local. O caso da obra de Aristóteles nos proporciona um exemplo e um ponto de partida privilegiados.
O próximo artigo desta série é DE ARISTÓTELES AOS MANIFESTOS LITERÁRIOS
sexta-feira, julho 14, 2006
O Desafio do Verossímil ao Verdadeiro
"Tísias e Górgias afirmaram que o verossímil merece mais apreço que o verdadeiro".
Assim expressa, essa asserção parece um mero paradoxo: é como dizer que o que é semelhante ao belo é superior ao belo, ou o que é semelhante ao útil é superior ao útil. Mas na realidade, a responsabilidade por tal paradoxo cabe, sobretudo, à tradução latina da Rhetorica ad Herennium (II-I séc. a.C.), que traduz eikós por veri similis e que foi seguida por toda a tradição retórica latina (Cícero, Sêneca, Quintiliano), que até nós condiciona a traduzir por “verossímil”.
Mas o significado prenhe de eikós não indica o que, em vez de verdadeiro, é apenas semelhante ao verdadeiro, mas significa aquilo que é “segundo a razão” ou, melhor, “segundo a racionalidade”. De fato, quando quer dar um exemplo de eikós nos Primeiros Analíticos, Aristóteles diz:
"Por exemplo, é eikós que os inimigos odeiem e os enamorados amem".
Nesse sentido têm razão Tísias e Górgias quando afirmam: dizer que é eikós que Alcibíades ame Sócrates é algo mais importante do que dizer que é verdadeiro que Alcibíades ame Sócrates. Significa, com efeito, que é essa a atitude que esperamos de Alcibíades segundo determinada forma de racionalidade, de coerência, de modelo de vida.
Ao contrário, o verdadeiro sem o verossímil é, com freqüência, impotente. Ésquilo personificou essa impotência na figura de Cassandra, que em vão, no Agamênnon, procura convencer os presentes da trágica verdade que paira, mas que a cada ouvinte parece inverossímil. Isso acontece não só na poesia, mas também na ciência. Basta pensar na provocativa asserção do filósofo da ciência Hans Reichenbach, que, para afirmar o critério do “verdadeiro” (aquele que, em lógica, chama-se “verdadeiro funcional”) como único critério legítimo, escreveu em 1951 que no monólogo de Hamlet
"Na realidade “ser ou não ser” não é em absoluto um problema, é apenas uma tautologia".
O que escapa a Reichenbach é precisamente o aspecto agonístico (de uma luta consigo mesmo) do dilema de Hamlet: avaliar que aspecto pertence ao critério do eikós, o qual pode por isso gabar-se de ser superior ao critério do verdadeiro. Para o critério lógico do verdadeiro não pode haver diferença entre a expressão de Hamlet “ser ou não ser” e expressões claramente tautológicas como “chove ou não chove”, “o Juventus ganhou ou não ganhou”, ou como Caetano Veloso “o amor é lindo, ou não”. Mantendo, pois, a tradução tradicional de eikós como “verossímil”, dever-se-á dizer então, como Tísias e Górgias, que o verossímil merece maior apreço do que o verdadeiro?
Que nas ciências exatas valha o contrário é inegável: dizer que a água gela a zero graus é por certo melhor do que dizer que é verossímil (ou razoável, ou provável) que a água gele a zero graus. Mas as coisas mudam quando não está em questão uma simples alternativa verdadeiro-falso, mas uma série de possibilidades, em ordem hierárquica de importância. A propósito, é típica a anedota da dona-de-casa que nega ter deixado de devolver um vaso por tê-lo quebrado, citado por Freud em seu conhecido Os chistes e Sua Relação com o Inconsciente (1905):
"Em primeiro lugar, nunca vi esse vazo; em segundo lugar, nunca o tomei emprestado; em terceiro lugar, já o devolvi; enfim, já estava quebrado quando o peguei".
Pela maneira como se contradiz, a autodefesa da dona-de-casa resulta cômica. Com efeito, sua segunda asserção (“nunca o tomei emprestado”) contradiz a primeira, de não saber sequer de que vaso se trata; a terceira asserção (“já o devolvi”) contradiz a primeira e a segunda; enfim a quarta asserção (“já estava quebrado quando o peguei”) contradiz tanto a primeira, como a segunda e a terceira. No entanto, se a dona-de-casa enuncia em tempos sucessivos suas quatro asserções, mostra-se idônea não do ponto de vista de uma verdade absoluta, mas hierárquico-agonística, que é a do eikós. De fato, a possível verdade das quatro afirmações está em ordem hierárquica decrescente: nunca ter visto o vaso é a eventualidade que tem maior peso para a autodefesa, enquanto a desculpa de tê-lo encontrado quebrado é o expediente mais fraco de todos.
Essa diferente eficácia das asserções verossímeis era chamada pelos retóricos gregos de seu “peso”, ónkos, termo que a retórica latina traduzia por pondus. O pior defeito de uma asserção é ser enunciada “neglecto rerum pondere et viribus sententiarum” [sem levar em conta o peso dos fatos e a força dos conceitos].
É o que escreve Quintiliano no nono livro de De Institutione Oratória. Ele chegava a pretender que a retórica latina pudesse ser superior à grega, pois, se os gregos venciam na sutileza das asserções verossímeis, os latinos podiam superá-los precisamente no “peso” delas:
"subtilitate vincimur, valeamus pondere!
[vencem-nos em sutileza, e nós os vencemos em peso!]".
Seria possível afirmar que esse conceito de “peso” das asserções e dos temas (como também dos problemas e das soluções) tem pouca cientificidade, sobretudo se contraposto a critério verdadeiro-falso que durante séculos foi o eixo de toda pesquisa científica. Todavia essa primeira aparência é hoje desmentida pelos fatos, em particular pela epistemologia destes últimos vinte anos. Um dos mais conhecidos epistemologistas americanos vivos, Larry Laudan, embasou seu tratado de 1977, Progress and its Problems, precisamente no conceito de uma “pesagem cognitivamente racional dos problemas científicos”.
Não se trata porém de um fenômeno exclusivo do nosso século, já que o próprio Descartes, no século XVII, mostrou, em suas pesquisas específicas de mecânica, guiar-se mais por uma avaliação do peso dos problemas do que pelo critério da verdade absoluta. Tal avaliação foi determinante para que sua física elevasse os problemas do choque e da colisão dos corpos, da posição totalmente marginal em que se encontravam na física precedente a uma posição central no estudo da mecânica. Isso se deveu sobretudo a uma “ponderação” das vantagens cognitivas que verossimilmente essa mudança de postura teria acarretado.
Esse comportamento é ainda mais significativo por provir daquele Descartes que partira do propósito metodológico de deixar de lado tudo o que não fosse certeza absoluta. Seus Princípios de Filosofia começam afirmando que “será útil considerar falsas inclusive as coisas que são apenas verossímeis”.
Mas já no Discurso do Método ele recuava para uma posição menos rigorosa, que admitia também o emprego do verossímil:
"Como freqüentemente as ações da vida não admitem temporizações, então, quando não nos é possível discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais verossímeis".
Quando se propôs descobrir novos princípios mecânicos, já não lhe bastaram nem o critério do verdadeiro absoluto nem o do verossímil: ele adotou, para os problemas do choque dos corpos, o critério pragmático da ponderação dos problemas.
A atitude inicial de Descartes lembra muito a do Sócrates platônico no Teeteto, para o qual todas as opiniões apenas verossímeis devem ser consideradas falsas, porque carecem daquele caráter de necessidade que é próprio apenas de ciência:
"A mera opinião não pode ser conhecimento, pois pode haver também opiniões falsas".
Tanto o rigorismo metódico inicial de Descartes como o rigorismo anti-retórico do Teeteto platônico são comparáveis à ingenuidade de quem acredita que o progresso científico possa ser produzido pelos computadores, os únicos que nunca erram. Mas, ao menos no estado atual, a simples memorização do verdadeiro e do falso não está em condições de produzir a inventividade da descoberta.
Na Antiguidade, quem impôs essa exigência foi justamente um discípulo de Górgias, Isócrates, personagem ainda mais emblemático por ser o único retórico a quem Sócrates reconhece, no final do Fedro, um talento filosófico. Quatro anos antes do aparecimento do Górgias platônico, em 391 a.C., Contra os Sofistas, manifesto programático da sua escola retórica, Isócrates escrevia:
"Enquanto para compor corretamente as letras do alfabeto não são necessárias outras capacidades [além de não cometer erros], para criar um discurso interessante é preciso ser pertinente ao argumento e original".
A pertinência (em grego kairós) também poderá vir a ser programada por um cérebro eletrônico, mas programar a originalidade é uma contradição em termos.
Foi nessa oposição que Karl Popper baseou, em 1934, sua teoria da descoberta científica. Num momento em que o neopositivismo vienense queria impor a toda a ciência o embasamento na análise lógica, que se limita a distinguir o verdadeiro do falso, ele advertia que o ato de conceber e inventar uma teoria não é suscetível de nenhuma análise lógica.
Por outro lado, porém, segundo Isócrates, apenas a originalidade não basta se não for conjugada a pertinência às circunstâncias; por isso, o verossímil (eikós) é síntese de invenção (héuresis) e de oportunidade (kairós). Isto é, se inventarmos conceitos não pertinentes a uma realidade efetiva teremos uma mera fantasia desprovida de realidade, do mesmo modo que se nos limitarmos a registrar o que é seguramente verdadeiro na realidade não teremos sequer aquele lampejo de inteligência que nos faz compreender – e não só registrar – a realidade. Parece ter sido este o pensamento de Górgias no fragmento que nos é citado por Proclo:
"a realidade fica obscura se não se torna aparência, mas a aparência é inconsistente se não for pertinente à realidade".
Todavia a realidade que consegue ser ao mesmo tempo aparência não é o verdadeiro, e sim o verossímil.
Aristóteles, que revalorizou a retórica, embora não negando a superioridade da filosofia, pretende pôr fim ao antagonismo entre o verdadeiro e o verossímil sustentando que o verdadeiro é o “universal absoluto”, enquanto o verossímil é o “universal com relação a” alguma coisa:
"O eikós é aquilo que acontece normalmente, mas não em absoluto [haplós], como consideram alguns; é aquilo que, nas coisas que poderiam ser de outro modo, está para o que [prós hó] se refere como o universal para o particular".
Contudo essa relatividade do universal retórico é precisamente o fator que lhe permite representar um papel agonístico, proibido ao verdadeiro. A hipótese cosmológica dos “buracos negros”, fagocitosa matéria, é certamente uma idéia universal, mas só com relação à teoria da antimatéria; já para quem optar pela teoria da realidade como tríade próton-elétron-nêutron, a teoria dos buracos negros perde o valor. Poder-se-ia dizer, portanto, que a teoria dos buracos negros é um universal agonístico, um eikós, e estudar as modalidades e as possibilidades do seu agonismo pode ser objeto de uma nova retórica.
Em breve, o próximo artigo desta série: ESTILO RETÓRICO E ESTILO FILOSÓFICO. Aguardem!
Estilo Retórico e Estilo Filosófico
01 - A Contenda Original
02 - O Repúdio da Retórica e as Dificuldades da Filosofia
03 - O Desafio do Verossímil ao Verdadeiro
Citamos pouco acima a Lógica da descoberta científica, de Popper (1934), que teve o mérito de ligar os procedimentos da descoberta mais à lógica do verossímil do que à lógica do verdadeiro. Popper todavia não hesitava em se unir ao coro dos que, nos anos 30, ainda desprezavam os procedimentos retóricos, como indignos da dignidade da ciência. Mas no ano seguinte ao aparecimento do seu livro, em 1935, houve um epistemologista, muito menos conhecido, Ludwg Fleck, que propôs uma teoria dos estilos de pensamento, a qual retomava a antiga controvérsia entre Górgias e Platão, entre retórica e filosofia, entre verossímil e verdadeiro. Escreve Fleck em seu ensaio Por uma teoria do estilo e da comparação de pensamento:
“As concepções não são sistemas lógicos – por mais que desejam sê-lo -, mas unidades providas de um estilo, que como tais se desenvolvem, se atrofiam ou morrem, com suas provas, no interior de outras concepções... Uma das tarefas mais importantes da teoria do conhecimento comparado deveria ser pesquisar modo como concepções e idéias pouco claras passam de um estilo de pensamento a outro”.
O conceito de estilo, entendido à maneira de Fleck, presta-se bastante bem para designar o dilema entre retórica e filosofia, que surgiu no início dos séculos IV a.C. e que hoje volta a ser atual: mais que duas ciências em conflito, retórica e filosofia são duas maneiras diferentes de enfrentar de modo não diletante os temas cuja abordagem não é a engenharia monopólio de uma ciência específica (como a bioquímica, a engenharia eletrônica etc.). Esse uso o termo “estilo” já estava presente, de resto, inclusive em autores do mundo oitocentista, p. ex., em Flaubert, que escreveu numa carta a Taine:
Le style n’est qu’une manière de penser
[O estilo é tão só uma maneira de pensar]
E se quiséssemos caracterizar o estilo retórico, tal como se apresenta em sua primeira oposição ao estilo filosófico, poderia ser-nos útil a teoria expressa no fim do século por Adolf Hindelbrand (Das Problem der Form in der bildenden Kunst, 1893), que distingue o estilo da visão de longe, Fernbild, do estilo da visão de perto, Nahebild. A retórica é caracterizada por um estilo que visa a determinar um tema, apresentá-lo em seu peso cultural e humano, propor uma solução para ele: enquanto tal, é um estilo de Fernbild. A filosofia, por sua vez, embora visando ao universal, aspira a dar ao tema um tratamento analítico, através de um estilo de Nahebild. Se a coisa é evidente quando ser compara um escrito de Górgias com um de Aristóteles, menos evidente resulta se se confronta Górgias com Platão. Mas, aqui, a causa da oposição menos acentuada é justamente a forte presença de um estilo retórico inclusive no interior da filosofia de Platão.
Já Aristóteles fazia essa distinção de maneira lapidar no segundo livro da Metafísica: a retórica, mais fácil que a filosofia, é comparável a quem saiba alvejar uma porta com um arco, enquanto a filosofia é comparável a quem a saiba analisar em seus detalhes:
Se, em relação à verdade, as coisas parecem estar como no provérbio que diz “quem não saberia alvejar uma porta?”, então é mais fácil; contudo o fato de que, embora possuindo da porta uma visão de conjunto, não estejamos em condições de conhecê-la em suas partes indica que a empresa é mais difícil.
Típico de uma visão de conjunto, como a da retórica, é ela estar muito mais sujeita às diversidades dos pontos de vista do que a visão de perto. A porta citada por Aristóteles aparece segundo perspectivas bem diferentes para quem tiver um Fernbild de cima, da direita ou da esquerda, enquanto para quem a examinar de perto as diferenças de perspectiva serão quase inexistentes. Por isso, no trecho supracitado do primeiro livro da Retórica, Aristóteles caracteriza o eikós retórico como “universal com relação a...” O que é, precisamente, um universal perspectivo.
Essa natureza perspéctica do estilo retórico lhe confere aquela sua típica capacidade agonística de se contrapor a um adversário, na qual individuamos desde o início sua primeira diferenciação do estilo filosófico. Isso não significa que os filósofos não gostem de polemizar com seus colegas (ao contrário), mas, que nos textos de filosofia as partes polêmicas são aquelas em que o estilo filosófico dá mais facilmente lugar ao estilo retórico.
Foi precisamente com o estilo retórico que a filosofia aprendeu alguma das suas estratégias polêmicas, como as descritas por Aristóteles nas Confutações Sofísticas. Eis uma delas:
“A que se exprime em conformidade com a natureza é bom contrapor uma argumentação conforme à lei; já adiante de quem se exprime em conformidade com a lei é bom empregar uma argumentação dirigida para a natureza.”
Nesse sentido, assim como é célebre a distinção da Poética aristotélica entre a poesia e a história (“o historiador fala das coisas que aconteceram, o poeta, das coisas como poderiam acontecer”), é igualmente digna de nota a distinção que Quintiliano, no oitavo livro de De institutione oratoria, estabelece a retórica e a história. Ele sustenta que, enquanto é tarefa dos historiadores limitar-se a narrar, é oportuno que
“nos rhetores armatos stare in acie
[nós, retóricos, estejamos sempre em pé de guerra]
Por isso, seguindo o mestre, o discípulo de Quintiliano, Plínio, o Jovem, falou de um “estilo combativo!”, stilus pugnax, que, se bem não se forma exclusiva, caracteriza o estilo retórico.
Nesse sentido, o estilo retórico, como estilo constitucionalmente competitivo, tem como seu antagonista radical não tanto o estilo filosófico quanto o estilo dialético. Dissemos, de fato, que a dialética se caracteriza essencialmente pela sua natureza colaborativa, e a colaboração é o oposto da competição. Na dialética, uma determinada tese se contrapõe às outras não, como na retórica, para vencê-la e afirmar a sua superioridade, mas para, juntas, procura superar o antagonismo numa nova visão, que tenha se possível a concordância de todos. Esse procedimento foi teorizado lucidamente por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco:
“Um é levado para a direção, outro para outra... É preciso então que cada um se mova na direção oposta à sua; assim cada um se afastando da uniteralidade alcançará o meio-termo, como fazem os que querem endireitar os paus tortos”.
Deve-se indubitavelmente a Hegel e ao marxismo de tipo hegeliano o fato de esse estilo dialético ter-se tornado nos últimos duzentos anos um dos procedimentos mais exuberantes – mas, por vezes, também um tremendo peso – do pensamento contemporâneo. Hegel descobriu que visar à superação das contradições, o que é típico da dialética, pode conjugar-se de forma feliz com a fé no progresso da história. De fato, acreditar no irrefreável progresso da história significa acreditar que as contradições do presente possam dar lugar às realizações do futuro.
O prefácio à Fenomenologia do espírito chegou a personificar o stilus pugnax, cavalo de batalha da retórica, e o stijos conciliandi, próprio da dialética, nas duas faculdades humanas do intelecto e da razão. O intelecto, faculdade da dissensão, é para Hegel uma faculdade preciosa como estímulo, mas deletéria se se perseverar na dissensão:
“A atividade de separar é a força e o trabalho do intelecto;... que o acidental ut sic, separado do que o circunda... defenda a sua existência determinada... tudo isso é a força gigantesca do negativo”.
Portanto, para Hegel, a combatividade negativa da retórica só poderia adquirir utilidade confluindo para o estilo colaborativo da dialética. Segundo ele, a utilidade da negação e da contradição está essencialmente em revelar a insustentabilidade do presente e em prenunciar dialeticamente o futuro:
“A fatuidade e o tédio que tomam conta do que subsiste ao presente, o pressentimento indeterminado de um ignoto são os sinais anunciadores de algo diferente que está em marcha”.
Essa perspectiva dialética de Hegel (e do primeiro Marx) revelou-se inegavelmente mais uma ilusão do que uma via mestra. Também um marxista hegeliano do nosso século, como Ernst Bloch, veio a definir o estilo dialético como “um moinho que faz barulho mas não mói o grão”.
A acusação de Bloch é bem fundada: a dialética pretende possuir um esquema infalível – que sempre se reduz, inclusive em suas múltiplas variantes, à conciliação dos contrários -, e pretende que seja possível aplicar esse esquema monótono às mais diversas situações. Isso gera inevitavelmente um formalismo vazio, justamente aquele formalismo que Platão, amigo da dialética, criticava na retórica. O mundo do pensamento é muito mais variado e imprevisível do que os pedaços de pau de que fala Aristóteles no trecho citado. Claro, se um pau entortou para a esquerda, para endireitá-lo convém virá-lo para a direita. Ms, por exemplo, tentar-se-ia em vão endireitar um pensamento que pendesse excessivamente no sentido da morte, como o de Heidegger, temperando-o com um tipo qualquer de vitalismo. Nesse caso, é mais produtivo apresentar nitidamente a oposição competitiva de um discurso e de um antidiscurso, à maneira da retórica antiga.
Aconteceu porém que tanto o stilus pugnax da retórica quanto o stilus conciliandi da dialética influíram em todos os tempos sobre o estilo filosófico. Ou melhor, o procedimento filosófico caracterizou-se com freqüência porque prevalecia nele ou o estilo retórico combativo, ou o estilo dialético conciliatório. Assim, surpreendentemente, aconteceu que, em Platão, inimigo ferrenho da retórica, é precisamente o polêmico estilo retórico que prevalece, enquanto Aristóteles e Hegel, para nada inimigos da retórica, fazem prevalecer em seus escritos um estilo dialético: Aristóteles por sua tendência a procurar o “meio-termo”, Hegel por sua busca da “síntese” acima de toda e qualquer contenda. Todavia a prevalência do estilo dialético não é capaz de eliminar, na filosofia, a presença do estilo retórico: basta pensar na agressividade bem retórica com que, na Fenomenologia, Hegel ataca tanto os românticos como Schelling.
Resumindo, em relação ao estilo filosófico, o estilo retórico se apresenta com três características essenciais: antes de mais nada, um sentido hierárquico dos temas e das soluções, que leva a busca de maneira agonística o que for mais eficaz do ponto de vista conceitual, independentemente do critério do verdadeiro e do falso; depois, a tendência a considerar temas e soluções em sua globalidade e, por isso, na sua apresentação perspectiva segundo os diversos pontos de vista; finalmente, a agressividade polêmica pela qual todo tema e toda solução sempre são considerados competitivos em relação a outros temas e soluções opostos. Agonismo, globalidade, polêmica bastam para caracterizar um estilo de pensamento. Foi precisamente assim que nasceu o estilo retórico na época de Górgias, e assim ele entrou em rivalidade tanto com a filosofia como com a dialética. Mas tal estilo se reduziria a um formalismo vazio se não agisse em função da criatividade conteudística que tem em mira, isto é, a invenção dos temas e das soluções.
Nem sempre, porém, no decorrer da sua história a retórica dirigiu seu estilo para a invenção dos conceitos. E quando não o fez tornou-se como aquele “moinho que faz barulho mas não mói o grão”, de que falava Bloch acerca da dialética hegeliana. Isso contribuiu para criar aquela má fama de formalismo vazio que tanto a prejudicou. A arte de inventar é, pois, a arma indispensável com que a retórica pode resgatar seu estilo do perigo do formalismo, conferindo-lhe aquela vitalidade que faz dela um rival direto do estilo filosófico. Por isso é oportuno que nós também dermos precedência à arte da invenção como ponto de partida ideal da retórica mais válida.
O próximo artigo desta série é A TÉCNICA DO ANTIMODELO
A Técnica do Antimodelo
A Técnica do Antimodelo
Devemos aos retóricos latinos a elaboração completa da arte da invenção e das suas técnicas: Cícero escreveu um tratado De Inventione, e a Inventio ocupa sempre a primeira parte dos manuais latinos de retórica. Mas a invenção teorizada pelos latinos se refere predominantemente às argumentações dos debates jurídicos; portanto, uma invenção em tom menor com relação à grande arte grega de inventar conceitos, temas e soluções, a héuresis, que constitui, como já acenamos, o orgulho de Górgias que remontam as primeiras técnicas destinadas a estimular, com meios apropriados, a invenção dos conceitos.
Um técnica inventiva típica da escola de Górgias foi a do antimodelo. Ela parte da convicção de que se, na invenção dos nossos conceitos , nos referimos como ponto de partida a um modelo precedente, iremos espontaneamente imitá-lo e, portanto, será difícil dizer algo original. Essa dificuldade é evidenciada por Quintiliano, que, nesse ponto, faz eco a Górgias no décimo livro da De Instituine oratória:
“O que quer que resulte semelhante a algo precedente é inevitável que seja de menor valor do que o que é imitado; do mesmo modo que a sombra vale menos do que o corpo que a produz, a reprodução vale menos que original, os gestos imitados valem menos que os autênticos”.
Por outro lado, pensar e dizer coisas que jamais foram pensadas ou ditas dificilmente pode alcançar bons resultados. Se um conceito não for apenas uma esquisitice, é impossível que nunca tenha vindo à mente de alguém, ainda que de maneira diferente. Por isso as melhores invenções sempre têm um ponto de partida anterior, como adverte Horácio na Ars Poética:
“rectius Iliacum carmen deducis in actus,
quam si proferes ignota indictaque primus
[Terás maior sucesso se levares à cena o argumento da Ilíada do que se fores o primeiro a representar coisas desconhecidas e jamais expressas em palavras]”.
São as inevitáveis Cila e Caríbidis de quem se baseia na invenção: se parte de um modelo, corre o risco de não ser original; se renuncia a todo e qualquer modelo, corre o risco de conceber coisas estúpidas ou banais. Foi por isso que a retórica gorgiana idealizou, como técnica de invenção, uma terceira via: partir de um antimodelo, e não de um modelo. Ou seja, postamos-nos diante de um produto, um autor, ou uma tendência que se considera inaceitável, de maneira que o esforço para dele nos afastarmos estimule pensamentos e problemas artísticos antitéticos àqueles precedentes negativos.
Foi um discípulo de Górgias, Alcidamante, que inaugurou aquilo que se tornou depois quase uma moda: cada um conceber o seu escrito como reação a um determinado antimodelo. O título do escrito deverá obrigatoriamente, pois, começar com a palavra “Contra...” (em grego Prós). Alcidamante, rival de Isócrates, tomou justamente este como antimodelo e escreveu uma obra intitulada Contra os logógrafos, ou sofistas. Não sabemos se teve êxito nessa técnica, porque a obra nunca chegou até nós. No entanto, a moda dos escritos “contra” divulgou-se amplamente, sobretudo entre os céticos e estóicos. Às vezes o antimodelo é representado por uma categoria de intelectuais, como no Contra os físicos de Tímon de Fliús e nos célebres livros Contra os dogmáticos e Contra os matemáticos de Sexto Empírico; às vezes é um pensador, como no Contra Demócrito e no Contra Erilo do estóico Clentes; outras pode ser um certo tipo de comportamento, como no Contra a sabedoria de Enesidermo de Cnossos. Essa técnica revelou-se tão profícua a ponto de ser com freqüência retomada ao longo dos séculos até os dias de hoje, mantendo-se o costume de indicar a antítese já no título. Basta recordar , no humanismo, o Antibarbarus de Nizólio contra a lógica aristotélica, no Iluminismo, o Anti-Sêneca de Lamettrie, em nossos dias o Anti-Édipo de Deleuze e Guattari.
O Contra Erilo do filósofo e retórico Cleantes pode exemplificar bem o funcionamento dessa técnica inventiva. Cleantes propunha-se a criar uma nova ética estóica que não se limitasse apenas aos preceitos de Zenão de Cítion, “viva de acordo com a natureza” e “viva de acordo com a razão”. Quem lhe forneceu o ponto de partida foi um aluno de Zenão, Erilo, que sustentara não ser verdade que todas as ações são boas ou más, mas que a maior parte das ações são “indiferentes” (adiáphora), porque não alcançam um grau suficiente de bondade ou ruindade. Tomando a teoria de Erilo como antimodelo, Cleantes elaborou uma teoria não quantificativa dos valores morais. Essa teoria tornou-se conhecida graças a uma metáfora bastante eficaz: do mesmo modo que um homem se afoga tanto se a água lhe chega apenas pouco acima da boca como se acima dele houver mil metros de água, também é condenável um homem tanto roubar uma pequena como uma grande quantia. É provável que se Cleantes não tivesse pensado em aplicar à sua pesquisa filosófica a técnica retórica do antimodelo, não teria conseguido inventar essa teoria, original para o seu tempo, da não-quantificabilidade dos valores morais.
Ms não é só à filosofia que a retórica pode emprestar, como instrumento heurístico, a técnica do antimodelo. Já no século II d.C. essa técnica estava vastamente difundida entre os artistas, intelectuais e narradores de diversos tipos. O geógrafo Pausânias (cerca de 150 d.C.) conta que obrigava seus discípulos a ouvir um mau instrumentista que morava em frente à sua casa para que aprendessem a detestar suas desafinações e seus tempos errados. E a grande divulgação dos relatos de viagem de Pausânias fez com que essa sua exortação a partir de modelos negativos continuasse a ser repetida séculos depois. Ainda Montaigne a recorda em seus Ensaios, onde a legitima e a desenvolve:
“Quem pensa o oposto de mim não me aborrece, nem me irrita: ao contrário, me estimula e me exercita”.
“É sabido que competição desenvolve a semelhança entre antagonistas, que acabam tomando um do outro todos os procedimentos eficazes”.
O caso mais famoso é o da oposição entre o Discurso Justo e o Discurso Injusto nas Nuvens, onde o Discurso Injusto, destinado a derrotar seu adversário, se recusa a falar em primeiro, já que pretende inventar suas argumentações com base nas do adversário:
“coro – Quem quer tomar a palavra primeiro?
Discurso Injusto – Cedo a minha vez. Depois que ele falar, eu o acossarei, atingindo-o com palavras novas e conceitos novos... Arrasá-lo-ei com minhas razões!”.
“Discurso Justo – Estou derrotado”.
Como se vê, a técnica do antimodelo se bifurca em duas possibilidades: a dos escritos “contra”, que os alemães chamam de Steitschriften, e a de introduzir uma oposição dialógica dentro de um mesmo escrito. Ambas fazem parte daquele aspecto polêmico , que vimos, caracteriza em boa parte o estilo retórico. Existem, porém, outros tipos de artes inveniendi, que se efetuam através de procedimentos positivos.
O próximo artigo desta série é A ITERAÇÃO DOS CONCEITOS
RETORNAR AO ÍNDICE DE RETÓRICA, UMA INTRODUÇÃO
terça-feira, julho 11, 2006
A Revolução do Alfabeto
01 - Introdução - O Homem e a Escrita
02 - Um Nascimento Humilde
03 - Uma Invenção dos Deuses
A escrita cuneiforme, os hieróglifos ou os caracteres chineses têm em comum transcrever palavras e sílabas. Saber ler e escrever, nesses sistemas, consiste em conhecer um grande número de signos ou de caracteres.
Completamente diferente é o funcionamento do alfabeto, permitindo, a princípio, com cerca de 30 signos, tudo escrever. Todavia, não é tão simples assim, pois as 23 letras de nosso alfabeto não reproduzem todos os sons... daí os problemas cruciais encontrados pelos escolares no aprendizado da ortografia! Mesmo assim, 23 letras são muito menos do que os mil caracteres do chinês popular, as algumas centenas de hieróglifos do povo egípcio e muitíssimo menos do que os 600 signos cuneiformes do aluno-escriba da Mesopotâmia. Por essa razão, muitos pensam que o aparecimento do alfabeto marca verdadeiramente o início da democratização do saber.
O primeiro modelo de alfabeto, o dos fenícios, ignora as vogais.
Os gregos possuíam um sistema de escrita, no segundo milênio a.C., o qual desapareceu, por volta de 1100 a.C., quando sua cultura foi destruída pelas invasões dóricas. Três ou quatro séculos mais tarde, a escrita fenícia espalhou-se pela Grécia. Ignora-se de onde vêm esses signos, encontrados gravados em fragmentos de barro. Mas é possível, e mesmo verossímil, que tal alfabeto provenha de transformações sucessivas provavelmente ainda da escrita demótica do antigo Egito.
Do que se tem certeza é que o alfabeto fenício era composto somente de consoantes, isto é, no sentido próprio, de sons ou fonemas que só existem na língua falada no momento em que “soam”, melhor dizendo, realizam-se ao lado das vogais. Era próprio das línguas semíticas, como o hebraico e o árabe, possuir pouquíssimas vogais.
Os fenícios, que eram, sobretudo, comerciantes e navegadores, comerciavam com todos os povos do perímetro do Mediterrâneo oriental. E foi por causa de suas transações comerciais que fizeram seu alfabeto conhecido nessa parte do mundo.
Dois novos alfabetos aparecem e servirão para redigir o Antigo Testamento.
Cinco séculos mais tarde, por volta do século VIII a.C., foi encontrado em cidades da atual Síria – então chamadas país de Arão – um alfabeto “aramaico” (ou arameu) semelhante, em alguns detalhes, àquele utilizado pelos fenícios.
A escrita e a língua aramaicas terão uma importância capital em nossa história, pois será com elas que serão escritos certos livros do Antigo Testamento. Porém, a maior parte dessa obra nos foi legada em uma língua cujos vestígios escritos mais remotos remetem a 700 a.C.: o hebraico.
Em sua forma primitiva, tal escrita não possui vogais e é lida, como o aramaico, da direita para a esquerda. Com pequenas diferenças, trata-se da mesma língua usada hoje como língua oficial em Israel.
O antigo hebraico, chamado “hebraico quadrado” – por seus signos obedecerem à forma de um quadrado -, sofreu poucas transformações no decorrer dos séculos. A escrita hebraica comporta, a par de letras “maiúsculas” – aquelas gravadas nos monumentos e copiadas nos rolos sagrados da Bíblia -, letras “cursivas” empregadas no dia-a-dia.
A escrita hebraica servirá, alguns séculos mais tarde, para transcrever uma outra língua falada pelos judeus da Europa central, o iídiche, bastante distante do hebraico, porque composta principalmente de palavras de origem germânica e eslava; o que faz com que os especialistas digam que a escrita é uma realidade em parte independente da língua (em parte somente!).
As escritas árabe e hebraica, ainda hoje em uso, beberam das mesmas fontes.
Com toda a certeza, a história da escrita é uma história de família. Tanto a escrita árabe quanto a hebraica são originárias do alfabeto fenício. Como? Em conseqüência de quais peripécias? Pouco se sabe, pois a filiação que permite passar da escrita fenícia à escrita árabe continua uma das mais obscuras. O que parece certo é que no começo da nossa era as populações do norte da Arábia, os nabateus, faziam uso de uma escrita que não era mais fenícia, porém ainda não era árabe. Também é certo que as primeiras inscrições, propriamente árabes, sejam datadas de 512-513 d.C. Em 622, o profeta do islamismo, Maomé, deixa Meca para se refugiar em Medina. Essa data marca o início da Hégira, isto é, da era muçulmana. Cerca de dez anos antes, os primeiros textos do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, teriam sido ditados a Maomé por Alá, e transcritos na escrita árabe, por volta do ano 650; isto significa dizer que tal escrita é ligeiramente anterior ao islamismo, o qual, graças a uma rápida e prodigiosa expansão através do mundo, fez com que ela (a escrita mais que a língua) também se propagasse. O norte da África, a Ásia Menor e a Índia e a China oriental, territórios conquistados pelo Islã, vão adotar tal escrita. E se o Ocidente cristão não tivesse repelido o domínio mouro na Europa meridional, talvez hoje, a Europa ocidental inteira escrevesse em caracteres árabes.
Na Bíblia – Antigo e Novo Testamentos – e no Alcorão, os vocábulos escrita e escritura adquirem conotação sagrada.
Os cristãos, quando falam em Escritura ou Escrituras, designam seus livros santos. O mesmo acontece como o Alcorão: a escrita é em si mesma “escrita de Deus”; também o eram os hieróglifos para os antigos egípcios. Ela é reverenciada mesmo sem ser lida ou compreendida. Atualmente, nas escolas alcoranistas dos países da África ou da Ásia, onde se falam outras línguas, o Alcorão é ensinado na escrita árabe original.
Por motivos religiosos e outros, a escrita árabe conhecerá tamanho desenvolvimento que servirá para transcrever o persa. Todavia, o persa, língua do atual Irã, é uma língua indo-européia da mesma família do latim e do francês, não tendo nada em comum com o árabe, língua semítica.
No decorrer dos séculos, a caligrafia árabe produzirá obras-primas de fascinante diversidade.
Assim como o hebraico, o árabe é escrito e lido da direita para a esquerda e não possui vogais. Compreende 18 letras, que, associadas a pontos, perfazem um total de 29. Na escrita cursiva, os caracteres ligam-se uns aos outros.
Porém, o espírito próprio da escrita árabe é sua capacidade de prestar a inúmeras formas, a prodigiosas metamorfoses. A religião muçulmana, ao proibir de representar o rosto de Deus ou o do Profeta, fez com que a escrita se tornasse o elemento decorativo essencial das mesquitas e de todos os outros monumentos. Ela é a base fundamental da arte dos “arabescos”. A caligrafia árabe conheceu, até nossos dias, estilos de variedade infinita, de fantasia ilimitada, desde o cófico, da cidade de Cofê, no Iraque, até os modernos “caligramas” de Hassan Massoudy. Sabe-se hoje que nas regiões situadas ao sul da Arábia até a Etiópia, e até mesmo no deserto do Saara, desenvolveram-se vários outros tipos de escrita, seguramente originários da escrita fenícia, a maioria deles já desaparecida. Subsistem, somente, a escrita etíope e a dos tuaregues – o tifinagh – que se distingue pela forma bastante geométrica de seus caracteres. Fato raro em toda a história da escrita: o tifinagh é atributo das mulheres. A sociedade tuaregue é matriarcal: ali como em outros lugares, escrever é possuir um certo poder.
Tomadas por empréstimo pelos gregos, consoantes do alfabeto aramaico vão tomar o lugar de vogais.
Todas essas escritas quase diretamente derivadas da escrita fenícia só possuem consoantes. Quando o leitor aprende a ler, deve aprender a vocalizá-las. Isto não constitui um problema intransponível para as línguas semíticas, pobres em vogais, mas não convém a uma língua como o grego, que comporta um grande delas.
Às portas do século VIII a.C., quando no Egito, escreve-se ainda em hieróglifos, e nas costas da Palestina são utilizadas, há mais de dois séculos, escritas “alfabéticas”, mais ao norte, na Grécia, fala-se uma língua muito diferente que os alfabetos existentes não são capazes de transcrever. Então, os gregos têm uma idéia simples e genial, a fim de criar suas vogais: a de tomar emprestado do alfabeto aramaico vários signos que, embora representando consoantes, não existem na língua grega. Assim nasceram: A “alfa”, E “epsílon”, O “ômicron”, Y “ipsilon”. Quanto ao I “iota”, foi uma inovação.
Este resumo não consegue expor todos os meandros da história; todavia, lá pelo século V a.C., o alfabeto grego já existia, comportando 24 signos ou letras, sendo 17 consoantes e sete vogais. Sabe-se também que existiam letras “capitais” ou maiúsculas e letras minúsculas. As maiúsculas eram usadas mais freqüentemente para gravar sobre pedra, ao passo que as minúsculas eram utilizadas para escrever sobre papiro ou sobre plaquetas de cera. Na verdade, os gregos inventaram espécies de “ardósias”, plaquetas recobertas por uma camada de cera, sobre as quais os alunos desenhavam as letras com um buril, um estilete ou ainda um estilo (espécie de ponteiro), podendo ser apagadas. Como os egípcios, os gregos usavam também um material menos caro, utensílios de barro não polidos, não envernizados. Foram encontradas numerosas peças , das quais as ostraca revelavam um costume muito próprio da democracia grega: o “ostracismo”. O nome dos cidadãos julgados indesejáveis era inscrito em pedaços dessa louça e, em seguida, colocados dentro de uma urna. Quando um ateniense era alvo de menções por demais freqüentes, era condenado ao exílio.
Nossa cultura deve tudo, ou quase tudo, à civilização grega, aí compreendido seu alfabeto.
Com a escrita grega, surge, a partir dos séculos V e IV a.C., uma das mais ricas literaturas de todos os tempos, representada por todos os gêneros: poesia, teatro, prosa, história, filosofia. Somos dela herdeiros, como também somos de sua escrita; causa principal de seu aparecimento, pois se essa escrita permitiu o nascimento e escritas complicadas – copta, armênia ou geórgica – é dela também que se origina o alfabeto latino, isto é, o nosso.... ou quase, porque aí também a história fica nublada e as certezas frágeis...
Sabe-se que os gregos foram grandes navegadores, navegaram em torno do Mediterrâneo e transmitiram sua escrita aos etruscos, habitantes do que hoje é a Toscana.
O “mistério etrusco” só faz aumentar o mistério de nossa herança grega.
Artesãos de uma das mais ricas civilizações da Antiguidade, os etruscos deixaram sobre as paredes de seus túmulos pinturas admiráveis e esculturas de uma beleza de um modernismo estonteantes. Também foram encontradas inúmeras inscrições escritas com signos semelhantes aos da escrita grega. Infelizmente, a língua dos etruscos ainda continua hermética para nós, a tal ponto que se fala em “mistério etrusco”.
Reis etruscos reinaram sobre Roma até o século IV a.C., data em que as populações que ocupavam a região do Lácio expulsa-nos. Os conquistadores latinos, futuros romanos, tiveram, então, que tomar emprestado o alfabeto etrusco, a fim de adaptá-lo à sua língua, o latim. Mas são só hipóteses. Certos autores pensam que o alfabeto latino teria vindo diretamente do alfabeto grego, sem passar pela escrita etrusca... A verdade é que por volta do século III a.C. foi criado um alfabeto latino de 19 letras , sendo o X e o Y anexados no século I a.C., na época de Cícero. Os romanos escreviam à moda dos gregos, porque usavam as maiúsculas para as pedras, as minúsculas para outras bases, papiro ou plaquetas de cera.
A gravura sobre pedra exigia um minucioso trabalho de preparação. Em função do número de palavras e de superfície a ser preenchida, era necessário determinar o tamanho das letras.
O gravador começava por “calibrar” seu texto, sem dúvida, sobre um rolo de pedra; ele devia traçar, com giz, as linhas indicadoras do limite superior e da base das letras (como o fazem hoje os pintores de anúncios). Depois, as letras eram desenhadas a carvão entre as linhas já feitas para, enfim , serem pintadas. Somente então, podia começar o entalhe a cinzel.
Nos séculos II e III d.C., surgem a “nova escrita comum” e a “oncial”, que vão ser transmitidas, até as portas do ano 1000, a todas as regiões da Europa onde vivem os romanos onde se escreve o latim.
Tão espantoso quanto possa parecer, é bem provável que as escritas indianas tenham as mesmas origens que o nosso alfabeto.
Desde o século III a.C., existem, na península da Índia, duas escritas principais: a escrita dita Kharosti e a escrita brahmi, às quais devem ser acrescentadas diversas variantes, que transcrevem o número incontável de línguas faladas nesse país imenso.
A escrita brahmi encontra-se na origem da escrita devanagari, com a qual escreve-se a língua sagrada de uma grande parte da Índia – o sânscrito – assim como uma das línguas mais correntes – o hindi. Ora, a escrita brahmi, totalmente alfabética, compreende consoantes e vogais, o que leva os historiadores a pensar que tais línguas não nasceram no mesmo lugar, mas constituem transformações do alfabeto fenício.
É verdade que a Índia e, particularmente, o vale do Indo eram um lugar de passagem, de comércio, entre os povos do Mediterrâneo oriental e os habitantes da península. Esses últimos faziam numerosos contatos com a Arábia, as costas fenícias e mesmo a Grécia.
Houve, também, como é sabido, a prodigiosa expedição de Alexandre, o Grande, nas margens do Indo, em 326 a.C. Enfim, convém não esquecer que as línguas da Índia, em particular o sânscrito, pertencem à família indo-européia. Esses dois elementos reforçam a tese de uma origem comum.
Quatro séculos antes de nossa era, os indianos já eram excelentes gramáticos.
Panini, um indiano nascido em Salatura, considerado o primeiro gramático lingüista, soube “descrever”, no século IV a.C., o funcionamento preciso das consoantes e das vogais da língua dos deuses, o sânscrito; o que explica, em parte, o fato de que as escritas indianas sejam integralmente alfabéticas e revelem uma fonética bastante estruturada.
As línguas importantes da Índia, lidas da direita para a esquerda, compreendem uma vogal principal. A maioria delas organiza-se em torno de uma “trave”, espécie de grande barra horizontal que une as letras entre si, acima de uma linha imaginária. Essa grafia particular confere-lhes uma notável beleza plástica.
Tendo como modelo as escritas da Índia, foram formadas, através de processos complexos, as escritas atualmente em uso no Tibete e em inúmeros países do Sudeste Asiático: Laos, Tailândia, Camboja e Birmânia.
A do Vietnã é um caso à parte. Os caracteres latinos, introduzidos nos séculos XVII e XVIII pelos jesuítas portugueses para facilitar a evangelização do povo, predominam em todo o país cujas escritas diferem de norte a sul, se todos então, se todos pudessem ler os mesmos caracteres. Inventaram, então, uma transcrição do vietnamita, a escrita “chu’quôc-ngu” (expressão que significa “caracteres da língua do país”), ou mais simplesmente “quôc-ngu”! Como as letras latinas não correspondiam à pronúncia do vietnamita, foi acrescentada uma quantidade de pontos e de acentos ou, mais precisamente, de sinais “diacríticos”.
Contrariamente ao que nós podemos pensar, a escrita não é a coisa mais compartilhada do mundo.
No começo de nossa era, existiam, pois, em alguns lugares do mundo, sistemas de escrita. Em alguns lugares... mas não em todos os lugares! Em nossos dias, ainda restam muitas regiões do planeta onde não se conhece a escrita. Os lingüistas enumerara, aproximadamente, três mil línguas distintas sobre a Terra e concordam que apenas uma centena delas se transcreve. E é bom lembrar também que um em cada dois indivíduos não conhece, mal conhece ou não conhece mais o uso da escrita.
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Uma Invenção dos Deuses
01 - Introdução - O Homem e a Escrita
02 - Um Nascimento Humilde
A história do antigo Egito teria ficado, sem dúvida, em grande parte desconhecida ou obscura, se Champollion e os egiptólogos não tivessem penetrado no segredo da escrita “hieroglífica” que recobre os inumeráveis monumentos do vale e do delta do Nilo.
Esta escrita, ao contrário da cuneiforme – austera, geométrica, abstrata – é fascinante, poética e viva mesmo! Porque é feita de desenhos admiravelmente estilizados: cabeças humanas, pássaros, animais diversos, plantas e flores.
Sumerianos e egípcios habitavam a mesma região do mundo e suas civilizações apresentavam muitos pontos comuns. Assim sendo, os pesquisadores ainda se interrogam sobre eventuais semelhanças entre os pictogramas de uns e os hieróglifos de outros. Contudo, por enquanto, encontram-se no terreno das hipóteses, a pesquisa está longe de ser concluída.
Segundo os antigos egípcios, foi o próprio deus Thot que teria criado a escrita, fazendo dela dom aos homens.
A palavra “hieróglifo”, que designa os caracteres da escrita egípcia, significa, de fato, “escrita dos deuses” (do grego hieros, “sagrado”, e gluphein, “gravar”).
Os primeiros documentos contendo inscrições em hieróglifos remontam ao terceiro milênio a.C., porém, parece que a escrita surgiu anteriormente. Em todo caso, não sofreu nenhuma transformação notável até aproximadamente 390 após Jesus Cristo; até mesmo quando o Egito estava sob o domínio romano! Simplesmente, ao longo dos milênios, o número de símbolos cresceu consideravelmente, passando de 700 a cinco mil, aproximadamente, no momento da ocupação romana.
De repente, os egípcios, contrariamente a seus vizinhos sumerianos, conceberam um sistema gráfico capaz de tudo exprimir.
Ao passo que na Mesopotâmia as inscrições primitivas tornaram-se pouco a pouco “resumos”, e só mais tarde uma escrita, o sistema hieroglífico é, desde sua origem, desde suas primeiras comprovações, uma escrita verdadeira: primeiramente porque reproduz quase completamente a língua falada, língua que pode ainda ser encontrada, na medida em que sobreviveu até nossos dias sob a forma da língua copta (Língua camito-semítica do ramo egípcio, cujas primeiras atestações datam do séc. II, e que é, atualmente, us. apenas como língua religiosa pelos cristãos monofisistas do Egito. ); depois, porque remete a realidades abstratas e concretas, transcrevendo conselhos tanto para a agricultura, a medicina, a educação, quando preces, lendas, direito, e a literatura sob todas as suas formas.
A originalidade e a complexidade dessa escrita se atêm ao fato de ser ela constituída por três espécies de símbolos: os pictogramas, os desenhos estilizados, representando coisas e seres, com combinações de símbolos para exprimir idéias; os fonogramas, os mesmos desenhos ou outros, mas que representam sons (os egípcios utilizavam, mais ou menos, os mesmos procedimentos dos rébus que os antigos sumerianos); e, por fim, os determinativos, símbolos que permitiam saber a que categoria de coisas e de seres pertenciam.
Logo que a “escrita dos deuses” começa a ser decifrada, ao prazer da compreensão une-se o prazer da contemplação.
Tal sistema gráfico, que é uma escrita, é belo e traduz bem a “escrita dos deuses”. Em geral, o nome dos deuses e dos faraós, considerados como deuses, figuram nos textos sob a forma de cartuchos, para que se reconheça o caráter sagrado dessas palavras.
O mais freqüente é que as linhas de hieróglifos sejam lidas da direita para a esquerda. O sentido da leitura é indicado pela orientação, pela direção das cabeças humanas ou dos pássaros: o leitor deve ler indo em direção à face ou ao bico. De fato, não é sempre tão fácil assim. Por exemplo: quando uma inscrição, sobre as faces laterais de um monumento ou de um templo, encontra-se nas proximidades da estátua de um deus importante (Osíris, Anúbis), ou de um faraó, os rostos das inscrições estão voltados em sua direção, o que muda o sentido da leitura e complica sua interpretação. Os hieróglifos podem também ser escritos de baixo para cima, ou, alternadamente, da direita para a esquerda, e da linha seguinte, da esquerda para a direita. Esta última forma é dita “boustrophédon”, literalmente: como o boi que vem e vai, fazendo sulcos na terra, isto é, lavrando a terra.
A “escrita dos desuses” é duplamente sagrada. Primeiro, porque, sem dúvida, a visão dos hieróglifos nos atrai ao ponto da contemplação. Incessantemente, sobre as paredes dos templos, nas faces laterais das tumbas, estão glorificados os inumeráveis deuses do antigo Egito, como se tais hieróglifos constituíssem, eles mesmos, símbolos sagrados. Tais símbolos, gravados na pedra ou desenhados e pintados, possuem uma beleza mais que humana e são, além do que significam, uma espécie de “poemas visuais” que para os antigos egípcios só podiam ser de inspiração divina.
E para nós, apreciadores de tais maravilhas, a emoção é a mesma, o transporte é análogo ao que proporciona a grande poesia, e para os crentes, a oração.
De essência divina, a escrita egípcia, todavia, não é consagrada exclusivamente à expressão religiosa.
Os inúmeros monumentos e documentos encontrados no Egito revelaram, como aconteceu também com a escrita cuneiforme, os múltiplos aspectos de uma grande civilização.
A escrita permitiu aos antigos egípcios perpetuar sua história, estabelecer a relação de seus soberanos, narrar acontecimentos importantes, casamentos reais ou batalhas. No Egito, como em toda parte, a história nasce com a escrita, colocando, pela primeira vez, os fatos históricos em ordem cronológica. Mas ela serve também para fazer a contabilidade, como entre os primeiros sumerianos, estabelecer regras jurídicas, redigir contratos de venda de bens e contratos de casamento. Ela é o veículo da literatura. A literatura egípcia é de extraordinária riqueza, alia gêneros os mais diversos: máximas de moral, hinos aos deuses e aos reis, contos históricos e romances de aventuras, cantos de amor, poesias épicas e fábulas.
Dentre os mais conhecidos desses monumentos literários figura o Livro dos Mortos, escrito em hieróglifos no período da 19ª dinastia faraônica, isto é, no século XIII a.C. E, finalmente, não esqueçamos os textos geográficos e científicos, nem tampouco todos os que falavam da arte da adivinhação, da magia, da medicina, da farmacopéia, da culinária e, logicamente, da astronomia, a medida do tempo; de lunar, o calendário passa a solar desde o terceiro milênio, enumerando 365 dias e seis horas no ano.
No Egito, como na Mesopotâmia, saber ler e escrever é, ao mesmo tempo, privilégio e poder.
Os escribas eram os mestres da escrita e, por conseguinte, os mestres do ensino era, antes de tudo, ensino aprendido pela escrita.
Um aprendizado árduo, quando se pensa na complexidade da escrita hieroglífica. Admitidas na escola por volta dos dez anos de idade, as crianças lá ficavam somente alguns anos; os mais dedicados prosseguiam os estudos até a idade adulta. O método empregado pelos mestres egípcios consistia em exercícios de memorização e de leitura; os alunos passavam longas horas salmodiando em coro. A arte de escrever era adquirida por força de cópias e dita os, primeiro, em letras cursivas, depois, em hieróglifos. Os castigos físicos eram eficazes, se acreditarmos no preceito egípcio: “A orelha do menino fica nas costas, ele escuta, quando apanha!” e para os que faltavam à aula, a punição podia chegar à prisão. Os escribas formavam uma casta poderosa. O talento da escrita tornava-os, às vezes, tão poderosos quanto o faraó que lhes dava trabalho, particularmente, quando este contentava-se em ser um deus e se abstinha de aprender a ler, escrever e contar.
Diferentemente de seus pares da Mesopotâmia, os egípcios dispunham de vários suportes para escrever. Pedras, é claro, sobre as quais eram gravados os hieróglifos, mas também de um material leve, fino e mais manuseável, o papiro.
Há cinco mil anos, os escribas já utilizavam a folha, e tinta e a pena.
O papiro é uma planta que cresce abundantemente nos pântanos do vale e do delta do Nilo. Era empregado para fabricar diversos objetos do dia-a-dia, tais como cordas, esteiras, sandálias e velas de barcos. Seus caules fibrosos permitiram fabricar um suporte que iria revolucionar o mundo da escrita, dando à luz a “folha”. O tratamento consistia em cortar do caule tiras finas, juntá-las, entrelaçando-as. Sobrepondo perpendicularmente duas camadas, obtinha-se uma superfície plana e flexível, pronta para secar por compressão ante de ser polida. Cerca de 20 folhas seguidas eram coladas com pasta de amido, a fim de obter um rolo de vários metros de comprimento.
Para escrever, o escriba desdobrava o rolo com a mão esquerda e enrolava-o com a direita, à medida que o papiro era coberto por inscrições. Dadas as dimensões do rolo (o mais longo chegado até nós mede 40 metros), ele trabalhava, o mais das vezes, sentado como alfaiate, o papiro preso entre os joelhos sobre seu avental.
Para desenhar os símbolos, usava uma varinha de caniço de 20 centímetros cuja ponta era amassada ou modelada de acordo com o que desejava gravar. A tinta preta, muito densa e resistente, era composta de uma mistura de pó de fuligem e água, mais um fixador como a goma-arábica. Os títulos vinham escritos no alto e no início dos capítulos em tinta vermelha à base de pó mínio, um óxido de chumbo.
Monopólio do Estado, o papiro era exportado, desde o terceiro milênio antes da nossa era, para toda a bacia do Mediterrâneo, representando, para o Egito, uma apreciável fonte de renda. Porém, para o país em si, esse monopólio pesou bastante sobre o custo do papiro, fazendo com que escribas e estudantes se sentissem descontentes. Os “palimpsestos”, papiros cujo texto inicial era esboçado para serem reutilizados, atestam o preço elevado dos papiros virgens. Menos onerosas, a pedra calcária ou a cerâmica eram utilizadas para as anotações de menor importância. Quanto ao couro, já conhecido dos antigos egípcios e mais caro ainda do que o papiro, tinha seu uso reservado estritamente para textos de grande valor.
Para responder às necessidades da vida cotidiana, o sistema hieroglífico vai conceber duas outras formas de escrita mais rápidas.
Os desenhos de hieróglifos sobre papiro exigiam muita paciência e minúcia. Ora, tal escrita com seus signos esmerados, sofisticados, era inadequada à vida do dia-a-dia e à rapidez que certos trabalhos exigiam dos escribas. Então, inventaram uma escrita “cursiva” – que corre sobre o papiro – aparecida mais ou menos na mesma época que a escrita hieroglífica, e também chamada de “hierática” (do grego hieros, “sagrado", ou “sacerdotal”, pois, segundo o historiador grego Heródoto, que nos transmitiu tal designação, ela teria sido usada, em sua origem, pelos sacerdotes. Tal escrita apresenta os mesmos fonogramas, determinativos), porém freqüentemente ligados, unidos entre si, distanciam-se, pouco a pouco, do desenho primitivo.
Cerca de 650 a.C. , quando os hieróglifos e a cursiva “hierática” seguem seu curso, aparece uma cursiva mais clara, rápida, ligada (na qual as letras são ligadas entre si), lida, como a escrita hierática, da direita para a esquerda. É a escrita “demótica” ou “popular”, que será a escrita corrente no Egito. Na famosa Pedra de Roseta, pela qual Champollion desvendou o segredo dos hieróglifos, figura o mesmo texto escrito em hieróglifos, em demótico e em grego. E percebe-se que é muito difícil para um não-especialista reconhecer, a partir de caracteres demóticos, os hieróglifos originais.
Entretanto, possuímos ainda hoje traços dessa escrita: do mesmo modo que a língua copta permitiu reencontrar a língua falada pelos antigos egípcios, também sobreviveram, na escrita copta, alguns caracteres provenientes da escrita demótica. Por isso, Champollion dizia que, para compreender a escrita hieróglifa, se fazia necessário, antes de tudo, ler a escrita copta.
A Mesopotâmia e o Egito liberaram o segredo de suas escritas, porém a de Creta antiga continua, até hoje, um enigma.
No momento em que a escrita cuneiforme tomava seu aspecto quase definitivo, quando a civilização egípcia conhecia um fabuloso desabrochar e os escritos hieroglíficos multiplicavam-se, lá pelo segundo milênio a.C., desenvolviam-se em Creta, e, sem dúvida, na Grécia continental, escritas que se tornaram problema para os pesquisadores.
A partir da metade do século XIX, principalmente, foi descoberta, nas ruínas da antiga cidade de Cnossos, uma grande quantidade de fragmentos cobertos de inscrições.
Tais hieróglifos estão gravados ora em sinetes de esteatita (pedra fina, fácil de trabalhar), ora inscritos no barro, como o famoso “disco de Faístos”, um dos maiores enigmas desta história: em 1906, arqueólogos italianos descobriram em Creta um disco de barro coberto, em cada face, por 45 signos enrolados em espiral. Ninguém, até hoje, conseguiu decifrá-lo.
Na outra extremidade do mundo, a China inventa, dois mil anos a.C., a escrita que perdura até hoje.
A escrita chinesa é um caso único: nascida por volta do segundo milênio a.C., codificada lá por 1500 antes de nossa era e constituída em sistema coerente entre 200 a.C., e 200 d.C., é perceptivelmente a mesma que os chineses lêem e escrevem hoje.
No atual Egito, assim como na Mesopotâmia contemporânea (o Iraque), a escrita árabe tomou o lugar há muitos séculos dos hieróglifos e do cuneiforme. Mas a escrita chinesa é a mesma e sempre escrita chinesa. Certo, em outros tempos, os caracteres chineses eram traçados – mais exatamente lindamente desenhados – tradicionalmente com pincel e tinta (da China!); hoje, os chineses utilizam uma caneta ou uma esferográfica. Certo, as máquinas de escrever e de imprimir são dotadas de caracteres sem grossos e finos, mas, na essência e salvo modificações encontradas para simplificar, a escrita chinesa continua fiel a suas origens.
Como os egípcios, os chineses, atribuem um nascimento lendário à sua escrita.
Segundo a lenda, três imperadores estariam na origem da escrita, notadamente o imperador Huang-Che, que teria vivido no século XXVI a.C. e teria encontrado a escrita após haver estudado os corpos celestes e objetos naturais, em particular os vestígios, as pegadas de pássaros e animais. Segundo o poeta Wu Weiye, aparentemente a pior das invenções: “Huang-Che chorava na noite: tinha por quê.”.
Muito mais esclarecedora foi a descoberta acontecida após a cheia de um afluente do rio Amarelo em 1898-1899 que revelou fragmentos de cascos de tartaruga e omoplatas de cervo. Sobre esses fragmentos, estavam gravadas inscrições, os mais antigos traços da escrita chinesa.
Viviane Alleton, especialista em escrita chinesa, conta que “os sacerdotes gravavam suas perguntas sobre uma das faces do casco de tartaruga, aproximavam a outra face do casco do fogo (aceso a leste) e a resposta à pergunta feita deveria ser deduzida segundo os estalos e rachaduras produzidos pelo calor. (...) Os caracteres da indagação eram gravados de cima para baixo em colunas. (...) Tais caracteres, em seu princípio e suas estruturas, são idênticos aos atualmente em uso”.
O pictograma, elemento de origem, elemento-chave de todas as escritas, subsiste, ainda hoje, nos caracteres chineses.
Em quase todas as civilizações, a aventura da escrita começou por um idêntico primeiro capítulo: tanto nos antigos chineses quanto nos sumerianos, egípcios, hititas ou cretenses, os primeiros signos traçados foram, invariavelmente, desenhos, pictogramas e combinações de pictogramas. Além disso, certos pictogramas provenientes de civilizações bastante diferentes apresentam semelhanças surpreendentes.
A escrita chinesa obedece a uma série de regras sutis que fazem dela uma arte verdadeiramente poética.
Muito rapidamente, os pictogramas foram se estilizando, embora subsistam ainda nos caracteres chineses vestígios bastante visíveis dos pictogramas primitivos, dando a essa escrita uma caligrafia de dimensão poética, particularmente manifesta nas combinações de certos caracteres. Por exemplo: se acrescentarmos ao signo “orelha” o signo “dragão”, obteremos um signo composto, significando “surdo”.
Porém, a “chinesice” mais importante da língua e da escrita chinesa consiste em um único som pronunciado podendo significar, segundo sua grafia, várias coisas. Assim, o som “shi” pode significar “saber”, “ser”, “poder”, “mundo”, “juramento”, “abandonar”, “pôr”, “negócio”, “amar”, “ver”, “velar por”, “contar com”, “andar”, “tentar”, “explicar”, “casa” etc.
O que nos obriga a dizer que a escrita é, mais do que a língua falada (a do norte totalmente diferente da do sul), o elemento maior da unidade lingüística da China.
Cada signo deve estar inscrito em um quadrado perfeito. Em geral, é composto de uma chave, que lhe dá sentido (ou o essencial do sentido), e de uma parte fonética indicativa de sua pronúncia. Os caracteres (signos) devem ser desenhados, tendo os traços que os compõem em ordem exata. O chinês “do dia-a-dia” é lido da esquerda para a direita, ao passo que o chinês erudito e da poesia é lido do alto para baixo e da direita para a esquerda.
O próximo artigo a ser postado é A REVOLUÇÃO DO ALFABETO. Em breve